Ana Miranda leu Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, quando tinha 11 ou 12 anos. Mergulhou de corpo inteiro na narrativa fantástica, se divertiu com os personagens malucos e caiu no espaço do sonho. Teve de ler várias vezes para entender, mas valeu a pena. Ficou encantada, era uma criança sonhadora e o livro acendia a imaginação. Era uma rebelião contra a lógica, o lugar comum e o previsível. Ela jamais seria a mesma depois dessa leitura. Ana abre o ciclo de palestras da exposição interativa Eu Leitor em 2 de agosto com um depoimento sobre a experiência pessoal da leitura de Alice no país das maravilhas. A mostra será inaugurada na quinta-feira (26/7), às 19h, na Biblioteca Nacional. Nesta entrevista ao Correio, por e-mail, ela fala sobre múltiplos aspectos de sua viagem.
Entrevista / Ana Miranda
Em que circunstâncias você leu Alice no país das maravilhas e o que a fascinou?
Li Alice quando criança, talvez eu tivesse uns 11, 12 anos, e acho que o li sem nenhuma indicação, apenas porque o vendedor de livros o ofereceu e nossa mãe o comprou, talvez ela achasse que era uma história para crianças, com aquelas maravilhosas ilustrações do Tenniel. Era uma história para crianças, sim, mas também para adultos, havia dois livros num mesmo livro. Para entendê-lo, devo ter lido diversas vezes a história, mas me lembro do encanto de saber que havia um lugar de honra para a imaginação, eu era imaginativa, fantasiosa, e me senti colocada no mundo. Além do prazer que a história causa, o encanto pela menina, os personagens malucos, e, acima de tudo, o modo como a história é contada, com tanto brilho e inteligência.
Alice cai, frequentemente, em um espaço de sonho. É esse aspecto onírico que abre a possibilidade de todos os voos da imaginação?
Sim, isso mesmo, o sonho é uma porta aberta para a nossa imaginação, quase todos nós sonhamos com imagens, criamos imagens, imagens livres e sem sentido claro, que são um treino imaginativo muito bom. Mas há muitas outras portas para a imaginação. Lembro a frase do Rubem Fonseca, ;a imaginação é um labirinto em que o difícil não é a saída, mas a entrada;. Temos medo da imaginação, somos educados a domá-la, a acreditar apenas na ;realidade; material. Mas a literatura pode ajudar nisso. O Lewis Carroll usa um modo de narrar que nos abre a porta à imaginação, ele faz com que a Alice o tempo todo estranhe e critique os personagens, os fatos, os diálogos absurdos, e isso faz com que o leitor, que poderia estar estranhando, criticando, se ponha a favor do delírio, e isso cria uma experiência extraordinária.
Qual a importância de livros que sejam portais para o sonho?
A literatura é o sonho acordado, ela é construída com palavras que decorrem de movimentos interiores da mente, os romances são realidades irreais, parecem realidade, mas não passam de sonhos que sonhamos guiados por outros sonhos. Mas, certo, há livros que revelam que estamos sonhando acordados, ou nos dão a sensação de sonho, a atmosfera de sonho, como os livros de Kafka, puros sonhos, ou Alice no País das Maravilhas, ou quase toda a literatura infantil, em que animais falam, príncipes viram sapos, belas adormecidas acordam com um beijo, dragões voam sobre castelos... Esses livros portais de sonhos são importantes, sim, os seres humanos precisam ter acesso a seus mundos interiores, e o mundo da fantasia é um deles. A fantasia é parte de nossa construção pessoal. Também são importantes porque libertam nossas mentes da realidade opressora. Também porque dizem verdades de maneira sutil, aceitável. E nos fazem ver o mundo de outro ponto de vista. E nos permitem ter acesso a nossas próprias loucuras, nossos delírios.
Alice no país das maravilhas é um livro lisérgico?
Numa primeira observação, sim, as fantasias delirantes de Alice a partir do começo da história são causadas pela ingestão de um líquido numa garrafa onde está escrito: Beba-me, depois um bolo onde está escrito: Coma-me, com cerejas vermelhas, e isso é sugestivo de que os delírios da menina, ou melhor, do autor, são decorrentes de drogas alucinógenas. Mas, logo vamos vendo que tudo parece muito mais um sonho do que um delírio lisérgico; há trama, há diálogos, tudo nonsense, mas bem estruturado, e há o sentido crítico, presente no sonho com assiduidade, uma espécie de consciência dentro do inconsciente. E há toda uma conexão do livro com a realidade inglesa, e críticas ao comportamento. Na verdade, Lewis Carroll, um diácono da igreja anglicana, muito recatado e religioso, construiu a história num barco, improvisando para três meninas que ali viajavam, uma delas, a provável inspiradora do escritor.
Alice no país das maravilhas foi escrito com o objetivo de divertir as crianças. Mas, em que medida, o livro é também uma ação de rebelião contra a lógica, o senso comum e as coisas previsíveis?
O livro é totalmente rebelde contra a lógica, o senso comum e as coisas previsíveis. Por outro lado, é a favor da compreensão da lógica, nas entrelinhas há toda uma filosofia do lógico e do ilógico que permeia a história, sobretudo nos diálogos, e que é decorrente da experiência matemática de Lewis Carrol, que era professor de matemática. Sei que há professores de matemática que usam este livro para ensinar matemática e lógica. Os grandes livros sempre têm desdobramentos inacreditáveis. E fortes influências, dizem que Alice influenciou autores como Borges, Guimarães Rosa, entre tantos outros.
Alice é uma prima inglesa da Emília de Monteiro Lobato?
Ah, sim, as duas personagens parecem ser da mesma família, são construídas da mesma matéria, e elas têm um temperamento parecido, ambas são rebeldes, mimadas, opinativas, donas da verdade, espertas, egoístas, e simpaticíssimas; mas há uma diferença estrutural que as separa: Alice é um ser humano, uma menina de verdade, com cabelos bem penteados, sapatos e roupas bem-comportados, e Emília é uma boneca de pano, um pouco desgrenhada, cabelos rabiscados. Dizem que a inspiração para a Emília foi a boneca de retalhos de Oz.
Em que medida a leitura de um livro é capaz de impactar a vida de uma pessoa?
Acho que o impacto depende da sensibilidade da pessoa, do livro e do momento em que se dá o encontro entre livro e leitor, sei que sempre é uma relação muito bonita e muito íntima, adoro ler, é um tipo de relação humana que dá infinitas possibilidades, posso escolher, posso aprofundar, interromper... E sei que depois da leitura de um livro não somos mais a mesma pessoa, passamos por uma vivência de mãos dadas com uma alma que nos ensina muito, dizem que os livros ensinam mais do que sabem.
Exposição Eu Leitor
De 26 julho a 23 de setembro
Local: Biblioteca Nacional de Brasília (Esplanada dos Ministérios)
Palestras do evento
2/8 às 19h
Convidada: Ana Miranda
Livro: Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll
4/8 - sábado, às 17h
Convidado: Cristovão Tezza
Livro: Lord Jim, de Joseph Conrad
9/8 - quinta-feira, às 19h
Convidado: Caetano Galindo
Livro: Ulysses, de James Joyce
11/8 ; sábado, às 17h
Convidado: Luiz Carreira
Livro: Ficções, de Jorge Luis Borges
16/8 - quinta-feira, às 19h
Convidado: Martim Vasques da Cunha
Livro: ;O Paraíso Perdido; e ;Paraíso Recuperado;, de John Milton
18/8 ; sábado, às 17h
Convidado: Karleno Márcio Bocarro
Livro: Dom Quixote, de Miguel de Cervantes
23/8 ; quinta-feira, às 19h
Convidados: Lucília Garcez e Vladimir Carvalho
Livros: Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, e A bagaceira, de José Américo de Almeida
25/8 ; sábado, às 17h
Convidado: Rodrigo Lacerda
Livro: Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro