Adriana Izel
postado em 24/07/2018 07:32
Um dos principais nomes do samba, Dona Ivone Lara, que morreu em abril deste ano, tem uma trajetória de luta, seja na vida pessoal, seja na música. Durante anos, ela se dedicou à carreira de enfermeira e de assistente social até que, já aposentada, decidiu viver o sonho musical e fez história. Essa biografia extensa, encerrada aos 96 anos, será retratada no espetáculo Dona Ivone Lara o musical ; Um sorriso negro, de produção de Jô Santana, direção de Elisio Lopes e direção musical de Rildo Hora.
Com estreia prevista para 14 de setembro no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, o espetáculo está em fase de produção e ensaios e nas últimas semanas revelou o elenco completo. Para retratar três fases diferentes da vida de Dona Ivone foram escolhidas três atrizes: a brasiliense Fernanda Jacob, a angolana radicada no Brasil Heloísa Jorge e a carioca Dandara Mariana.
Das três atrizes, apenas a candanga foi convidada para integrar o elenco antes mesmo de fazer um teste. Fernanda foi a escolha da produção para substituir Fabiana Cozza, que renunciou após as críticas de que seria ;branca demais; para o papel. ;Com essa história toda da renúncia, estava indo conversar com a equipe criativa e a gente já tinha em mente: vamos dar voz a quem não tem voz. Nos falaram da Fernanda Jacob e eu estava indo a Brasília para uma reunião, marcamos um encontro e na hora percebi que ela era a Dona Ivone Lara;, conta o produtor Jô Santana ao Correio. Santana explica que alguns pontos o fizeram pensar que Fernanda era a escolha certa: ;Ela é do movimento negro, é uma atriz preparadíssima, é cantora e queria contar essa história com a gente;.
Na capital, Fernanda é conhecida pelo projeto Samba na rua, realizado por quatro anos na Vila Telebrasília, e também pela atuação em espetáculos com a negritude como temática, como a peça Pentes. ;Ele (Elisio Lopes) me viu no Facebook, viu que eu era atriz, que também cantava, que tinha um projeto de samba e o Jô (Santana) me encontrou em Brasília. Fui a São Paulo fazer um teste com o maestro, cantei três músicas de Dona Ivone, passei o texto e aí que bateram o martelo. Até hoje não sei dizer como tudo isso aconteceu;, afirma Fernanda Jacob.
Várias fases
No musical, Fernanda Jacob retratará a fase da sambista dos 40 aos 80 anos, o período em que Dona Ivone começou a se assumir como cantora, a aparecer em programas de samba e trabalhar com nomes da música, como Clementina de Jesus. ;Pego essa fase em que ela se assume como compositora e cantora, em que ela começa se apresentar mesmo, se mostrar, em que estava trabalhando, fazendo álbuns, parcerias, num momento de atividade constante;, revela.
Nos períodos anteriores, a personificação de Dona Ivone Lara fica com Dandara Mariana e Heloísa Jorge. A primeira a subir ao palco para encarnar a cantora é Dandara, que esteve no ano passado no elenco da novela A força do querer. Ela dará vida à Ivone aos 16 anos, na fase da escola. ;Tive a oportunidade de conhecer Dona Ivone, tenho fotos com ela em Madureira. Dona Ivone é uma rainha, tem composições atemporais. Então estou muito feliz (de representá-la), é uma bênção;, diz a atriz, comentando a oportunidade.
Dandara participou dos testes em São Paulo, que contaram com mais de 500 pessoas, das 600 convocadas de quatro mil projetos enviados à produção do espetáculo. Quem também foi escolhida nessa grande audição foi Heloísa Jorge (Sob pressão e A lei do amor), que viverá a artista nos anos 1940. ;Minha trama começa mostrando a vida dela como enfermeira, assistente social. É mais focado na parte da vida pessoal;, revela Heloísa. Sobre a experiência, ela classifica: ;Tem sido uma surpresa, tenho aprendido muito. Amo música brasileira e representar Dona Ivone representa não só para as mulheres, mas para a música popular brasileira, que é uma paixão enorme desde que cheguei de Angola.;
Homenagem à sambista
A ideia de retratar a história de Dona Ivone Lara era um desejo antigo do produtor Jô Santana e surgiu há oito anos quando pensou em uma trilogia musical do samba. O projeto teve início com o musical sobre Cartola, feito em parceria com a neta do artista Nilcemar Nogueira, atual secretária de Cultura do Rio de Janeiro, e que foi assistido por 100 mil pessoas.
A equipe de Um sorriso negro é quase toda composta por pessoas que trabalharam em Cartola ; O mundo é um moinho. O musical conta com apoio do Itaú Cultural e das lojas Renner. Além da turnê no Rio de Janeiro que vai até 25 de novembro, está confirmada uma passagem por São Paulo em 2019 no Teatro Sérgio Cardoso. Brasília e Salvador estão entre os desejos da equipe. ;Queremos muito fazer Brasília. Cartola viajou por cinco cidades, mas tudo depende de patrocínio. São 24 atores, oito músicos em cena, fora uma equipe com 200 pessoas envolvidas no projeto;, conta Jô Santana que adianta que o próximo musical deve se focar em Martinho da Vila.
Entrevista // Fernanda Jacob
Como surgiu a oportunidade de integrar o elenco do musical?
Digo que é coisa de destino, que são coisas espirituais e energéticas que estão acima disso tudo. Porque, de repente, o Elisio (Lopes) se sentiu comovido e teve um impulso com uma atriz e cantora de Brasília, que não está nesse meio comercial do teatro que é Rio e São Paulo, que é de teatro de grupo, dentro de uma cidade como é Brasília, que ainda tá conquistando espaço e tentando descobrir qual é área cultural por ser muito nova. Então falando da minha visão disso tudo, até hoje não consigo entender como surgiu essa oportunidade. Acho que quando a vida, o destino, os nossos orixás apontam não tem muita explicação concreta, né?
Dona Ivone Lara será retratada em diferentes idades e por outras duas atrizes. Qual época você ficará responsável por retratar?
A minha fase da Dona Ivone vai desde 1970 até quando ela chega com 80 anos, quando estava extremamente dentro do mercado. É uma fase bem bacana, onde a gente pode conhecer o lado artístico da Dona Ivone Lara. Além de ser uma mãe maravilhosa, uma mulher que defendia com unhas e dentes a família e que fez um trabalho lindo nos hospícios e manicômios, ela também tem um trabalho como artista. Dona Ivone acima de tudo é uma artista e pego essa fase, que é linda.
Como tem sido a sua preparação para dar vida a esse ícone da música brasileira?
A minha preparação desde o convite é observando e assistindo muitos vídeos de Dona Ivone. Ela cantando e em entrevistas e pesquisando a vida dela nas biografias... Porque não quero fazer uma caricatura, sabe. Não existe essa intenção de copiar. Quero achar essa Dona Ivone em mim, mesclando essa minha pesquisa com trejeitos e toda essa parte de achar movimentos, com o que é a minha Dona Ivone, do que tenho de observação com minhas tias, com minhas avós. Porque, acima de tudo, esse espetáculo fala de nossas tias, nossas avós, nossas mães, se trata da história de uma mulher preta. Então, mesclar um pouquinho desse pessoal, que é pessoal a mim, do que eu tenho como referência, com o que é Dona Ivone. Acho que isso é legal e faz com que o espetáculo tenha uma riqueza de pesquisa e que não seja só mais uma caricatura. A gente tem uma preparação vocal no Museu do Samba em todo o ensaio. Passei por uma etapa de aprender jongo. Está sendo assim, desde a parte musical, com a parte da atuação e com a vivência do que fez parte da vida da Dona Ivone.
Antes do musical, como era a sua relação com o trabalho de Dona Ivone Lara?
A minha relação com o trabalho dela é muito direta. Trabalho no samba e com o samba já tem 7 anos. Criei um projeto Samba na rua, que acontecia na Vila Telebrasília junto à comunidade e sem patrocínio. Com a vontade mesmo de resgatar esse samba feito na comunidade, de raiz e mais democrático, onde não se cobre tão caro para poder usufruir, porque às vezes você paga uma quantia extremamente cara para ter acesso a uma cultura que é nossa, onde poucas pessoas dão o devido valor e não entendem que samba é resistência. O samba conta muito a história do meu povo, da minha ancestralidade. Então, fazer Dona Ivone está sendo um presente muito grande. Ela é uma referência musical, como mulher que ultrapassou barreiras, como é o meu caso, porque a gente sabe que o samba ainda é um meio muito machista e, de repente, Dona Ivone na época dela se assumir como compositora, como cantora dentro de um mundo tão voltado para homens, como é o samba, me ajuda e me influencia muito, porque tantas vezes eu já pensei em desistir, sabe.
Por quê?
Porque, para além de ser mulher, sou uma mulher preta e a gente sabe que as questões raciais são muito complicadas no Brasil. Vivemos num país racista, onde oportunidade para preto é pouquíssima e a gente vê diante dos nossos olhos um genocídio da juventude e da população negra, num ano em que até hoje não se tem resposta para o assassinato de uma mulher negra que levou três tiros na cabeça como Marielle (Franco), e a gente sabe que isso aconteceu porque a mulher negra é usada como exemplo também nesse campo da crueldade. Enfim, englobando tudo isso para dizer que Dona Ivone é exatamente isso, é resistência. Ela representa o que é o samba para mim.
Uma figura histórica...
A minha proximidade com ela é exatamente com a história, com a capacidade de ser extremamente estratégica para conseguir o que quer, como foi Dona Ivone ao colocar um apelido masculino e depois se assumir como compositora. Sempre tive dificuldade de ser protagonista, porque o racismo sempre me pôs no meu lugar, sempre falou que isso não era pra mim. Então vejo toda a história de Dona Ivone, quero conseguir chegar aos meus objetivos, com dignidade, respeitando o outro, mas com muito garra. Isso me aproxima muito de Dona Ivone. Fora que o repertório dela é um repertório que tá dentro do meu trabalho.