Em cartaz a partir de quinta-feira (19/7) no teatro Unip, o espetáculo A visita da velha senhora foi escrito pelo suíço Friedrich Dürrenmatt na década de 1950. Mas poderia ter sido hoje. "A peça é mais do que atual, é propícia. Dependendo da notícia do jornal do dia parece que a gente está improvisando", afirma a atriz Denise Fraga.
A intérprete da protagonista do texto, um clássico do teatro moderno, explica que essa contemporaneidade aparece porque o autor fala de ética, mote também para as anteriores A alma boa de Setsuan e Galileu, ambas de Bertolt Brecht. "Talvez eu tenha montado todas essas peças para questionar até onde a gente faz concessão por causa do dinheiro. Até onde a gente se vende para poder comprar. A gente foi se acostumando a achar que o dinheiro justifica tudo e não justifica", reflete Denise, que já avisa: a proposta da peça é que a gente se veja no palco.
"Dürrenmatt fala do terrível e as pessoas vão rindo e se reconhecendo;, completa Denise. Mas a atriz garante que a ideia não é que as pessoas saiam deprimidas do teatro, pois há uma esperança no final e ;é nessa esperança que a gente precisa se segurar".
Em entrevista ao Correio, Denise fala sobre teatro, leis de incentivo, a contemporaneidade e, claro, ética. Confira!
Entrevista// Denise Fraga
A visita da velha senhora tem como um dos temas a ética, que vem permeando seus últimos espetáculos. Como é falar sobre isso para o Brasil de hoje?
Isso é muito louco porque, na verdade, a gente quer montar essa peça há 4 anos. A peça sempre será atual porque ela trata de um tema que é meio que um dilema eterno da humanidade: o que acontece com os valores morais quando a palavra é dinheiro? O que aconteceu é que a peça, mais do que atual, foi ficando propícia. Parece que foi encomendada ano passado, semana passada. É incrível isso!
Como é a reação da plateia diante disso?
A peça é uma comédia e é interessante ver a reação das pessoas. É uma comédia trágica, mas é uma comédia. E tem dias que eu sinto pela reação da plateia que parece que a gente está colocando algum caco (improviso, no jargão teatral). Dependendo da notícia do jornal do dia parece que a gente está improvisando. Eu sinto que o riso vem muito nesse sentido.
A peça leva a uma reflexão, então;
O tempo inteiro ela faz isso. Ela traça sempre esse paralelo e a encenação que o Luiz (Villaça, diretor do espetáculo e marido de Denise) fez inclui a plateia. Ela se sente cidadã dessa cidade pela própria configuração do espetáculo. O Dürrenmatt é tão genial que ele mesmo escreve um posfácio em que fala: essa peça é escrita por um autor que não sabe se agiria diferente dos personagens. Essa é a proposta que ele traz na peça: de a gente se ver. Eu vejo que as pessoas não saem da peça falando só se fariam ou não fariam. As pessoas saem muito pensando ;Meu Deus! Mas será que eu faria?;. Elas ficam assustadas. A peça dá uma arrebatada.
Mas tudo isso com humor, não?
Eu confio muito no humor. O humor é revolucionário. Você fala uma coisa de forma bem-humorada e tem uma eficácia de comunicação muito grande. Autores como o (Bertolt) Brecht, de Galileu, e o Dürrenmatt, que é um discípulo de Brecht, confiavam nos ingredientes do entretenimento. A visita da velha senhora é uma comédia, é escrita em timing cômico. Dürrenmatt fala do terrível e as pessoas vão rindo e se reconhecendo. Isso é que a grande esperteza desses autores. Através do humor e da ironia, eles vão abrindo uma trilha para o pensamento correr e você vai se reconhecendo. Isso tudo por meio do teatro, que é uma cerimônia em que todos estamos ali num pacto de silêncio, de atenção, com os celulares desligados. Ainda tem gente que deixa ligado, que não se desconecta, mas a maioria desliga. A cerimônia teatral hoje tem uma força muito grande, principalmente quando a peça propõe uma reflexão conjunta.
O espetáculo tem cenários grandes e um elenco com 13 atores. Como faz para viajar pelo país com essa estrutura?
Só é possível por causa da Lei Rouanet e do patrocínio. Para você conseguir fazer uma peça com 13 atores hoje, você precisa ter patrocínio. É preciso contar com isso, porque a arte não é um negócio no Brasil. Ainda não é! (risos) Mesmo assim tem gente que fala ;mas porque não vive de bilheteria?;. Eu convido essas pessoas a fazerem a conta. A Rouanet é importante. Ela precisa sempre ser reavaliada, claro. Mas se não fossem leis como a Rouanet ou a Lei do Audiovisual; Eu acho tão leviano a maneira com que as pessoas falam do incentivo cultural porque, na verdade, essas empresas que reconhecem o valor do incentivo cultural, que têm o setor de marketing cultural, realmente movimentam o setor. Em todo lugar do mundo a arte é incentivada, porque se não a gente só vai ver Batman. Eu adoro Batman, mas imagina o que vai ser a gente sem o sublime, sem a poesia, sem as sutilezas. Por que se não só vão se preocupar em vender, em ser campeão de bilheteria. Mas eu acredito na turnê. Para isso, você tem que ter um jogo de cintura absurdo e tem que optar por ganhar menos dinheiro. Dá, mas tem que ser tudo na ponta do lápis. Tem que ser muito corajoso. Mas vale a pena!
A gente ouve muito dizerem que o teatro está perdendo espaço, levando pouca gente aos espetáculos, com sessões apenas de sexta a domingo, temporadas mais curtas. Mas você conseguiu levar 350 mil pessoas a seus últimos dois espetáculos. O país também está numa crise. Como levar tantas pessoas ao teatro?
Talvez o próprio motivo do sucesso dessas peças seja a crise! O que acontece é que as pessoas precisam de algum bálsamo. E esse bálsamo não é só ir ao teatro e ;fazer kkkkk;. A pessoa sai dali com voz para a sua angústia. Uma das maiores funções do teatro hoje talvez seja dar a palavra ao público. O que tem me movido nas escolhas da peça é o ;olha só o que eu li!’. Nós, atores, temos, de alguma maneira, como uma das mais bonitas missões do nosso ofício clarear a palavra. Tem uma expressão que o teatro faz a palavra pular e eu adoro essa imagem da palavra pulando da estante para o colo do espectador. E isso numa época em que eu vejo amigos meus, leitores vorazes, lendo muito menos. Eu estou lendo muito menos. É uma tristeza o celular na nossa mão, porque a gente lê o dia inteiro e não lê nada, na verdade. A gente está nadando na superfície. É claro que a tecnologia traz coisas muito interessantes, mas eu sinto que ela nos botou um cabresto e não o contrário. A vida na rede social tomou conta da gente mais do que a gente a usou. O que eu sinto é que a gente está perdido num mar de imagens, de palavras e anda lendo muito pouco. Na verdade, mergulhando muito pouco.
Como entra o teatro nessa equação?
Eu acho que o teatro hoje está preenchendo esse buraco que era do papel, de te chamar ;vem cá comigo mergulhar nesse autor;, ;vem cá comigo que eu tenho uma coisa para te mostrar; e esse mergulho, essa concentração de duas horas é muito preciosa, principalmente quando se tem um texto que sobreviveu a anos, às vezes décadas, séculos. O que será que esse texto tem que nos diz tanto? Um clássico não é um clássico à toa. Um clássico torna-se um clássico porque ele sempre visita dilemas. Dilemas humanos que a gente nunca vai resolver. Por exemplo, em A visita da velha senhora, como nunca resolve, cada vez que isso é apresentado, a gente tem a esperança de nos tornamos pessoas melhores. É nessa esperança que a gente precisa se segurar. A peça dá a chance de você chegar diferente ao escritório na segunda-feira. Eu acredito nessa transformação. O Dürrenmatt é bem mais pessimista que o Brecht. Ele acredita que dá o diagnóstico, mas não dá o remédio. Mas como ele caiu na minha mão e na do Luiz, a gente fez um final brechtiano para ele, que dá essa esperança de que há um caminho e que está na nossa mão. Talvez eu tenha montado todas essas peças para questionar até onde a gente faz concessão por causa do dinheiro. Até onde a gente se vende para poder comprar. E a gente vai se acostumando a justificar nossas ações pelo dinheiro, para pagar as contas. A gente foi se acostumando a achar que o dinheiro justifica tudo e não justifica. O que eu sinto é que toda essa crise ética que a gente está vivendo está nos deixando melancólicos. É um período muito esquisito, com uma grande desesperança que gera reclusão. A Copa do Mundo foi uma prova disso: nenhuma bandeirinha na rua. Até porque, por mais que esses meninos joguem bem, eles viraram um emblema de milhões. Mesmo se o Brasil tivesse ganho, acho que a festa não seria tão grande.
Além do teatro, como estão seus projetos no cinema? Você faz bastante cinema;
Eu estou com dois filmes que eu fiz este ano, no meio da turnê de A visita da velha senhora. Um é Música para cortar os pulsos, do Rafael Gomes, e o outro, Quarenta e cinco do segundo tempo, do Luiz Villaça, meu parceiro de vida e de arte. É um filme muito bonito. São três amigos dos tempos de escola que se encontram numa situação muito inusitada. Acontece uma coisa com eles e eles passam a rever a trajetória deles. É muito bonito o filme. E muito engraçado também. Os amigos são vividos pelo Tony Ramos, Cassio Gabus Mendes e Ary França e eu faço a esposa do Cassio.
E como essa sua parceria com o Luiz? Vocês fazem bastante coisas juntos.
A gente trabalha muito junto e muito separado também. Agora no teatro eu quis muito ter a direção dele porque eu acho que é um texto em que os atores precisam fluir e o Luiz é um grande diretor de ator. Ele pede silêncio, pede pausas, pede calma e o silêncio no teatro é algo precioso. E a encenação que ele fez é muito teatral. Por ele ser um cineasta, às vezes a gente pensa que vai ver uma peça com ares de cinema. Muito pelo contrário: o espetáculo é muito teatral justamente pela montagem do Luiz. Nós ficamos em cena o tempo inteiro. A gente recebe o público na porta, distribui os programas, conversa um pouco.
E na televisão? Você não faz muita novela. Te cobram muito isso nas ruas?
Eu fiz a primeira fase de A lei do amor, ano passado, fiz as temporadas do (seriado) 3 Teresas, no GNT. Eu ando com saudades da câmera, dessa coisa diária da tevê que faz tempo que eu não faço.