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Conceição Evaristo: 'A literatura está nas mãos de homens brancos'

Homenageada em dois eventos literários este ano, Conceição Evaristo fala sobre a dificuldade de mulheres negras conseguirem ser vistas com produtoras de saber e conhecimento


Conceição Evaristo costuma dizer que, assim como escrever, publicar é um ato político. O racismo estrutural da sociedade brasileira se reflete também no mercado editorial e a dificuldade de publicar quando se é mulher, negra e escritora é uma realidade. Graças a um trabalho de formiguinha, no qual a coletividade é fundamental, a situação mudou desde que Conceição começou a publicar, há 28 anos. Ela ser homenageada em dois eventos literários este ano é fruto dessa costura que intelectuais negras vêm tecendo ao longo dos anos. Em Brasília, a autora será homenageada no Livre! Festival Internacional de Literatura e Direitos Humanos, que vai ocupar os parques da cidade em agosto. No próximo dia 27, ela recebe homenagem da Casa Libre & Nuvem de livros no evento Leitura, gesto político, que será realizado durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Homenagens tardias para uma carreira que, por conta do preconceito, iniciou com atraso.

Conceição começou a publicar bastante tarde. Escritora desde menina, ela viu suas histórias serem editadas pela primeira vez aos 44 anos, em 1990, na coletânea Cadernos negros, organizada pelo coletivo Quilombhoje. A primeira edição individual só veio em 1993. Por isso, ela gosta de repetir que publicar é um ato político: porque é uma maneira de subverter o imaginário brasileiro, no qual a mulher negra ocupa papéis que passam longe da escrita. Conceição lembra um episódio vivenciado no Rio de Janeiro, no prédio no qual aluga um escritório.

Certa vez, ao sair do local, esbarrou em uma senhora com formação de arquivista que reconheceu o rosto da autora de algum programa de entrevistas. Perguntou o que ela fazia. Conceição respondeu que era escritora e a mulher imediatamente perguntou se a romancista era autora de livros de receitas. ;E não estamos falando de uma pessoa sem leitura! Essa até deu um salto adiante: mulher negra até pode escrever, mas tem que ser um livro de receita. Então, escrever e publicar são atos de rebeldia que nos colocam em outro lugar, contrariando o imaginário que a sociedade brasileira tem sobre nós;, diz a autora.

Prêmios

Houve mudanças desde os anos 1990, mas Conceição acredita que ainda são poucas. O número de escritoras negras nas listas de prêmios e nos catálogos das grandes editoras é mínimo. Muitas publicam por casas pequenas, cuja distribuição nem sempre tem grande alcance. Prêmios literários e pesquisas acadêmicas ajudam a colocar o nome dessas mulheres no mapa, mas elas ainda estão ausentes das listas de premiações. Em 2015, 25 anos depois de publicar o primeiro livro, Conceição ficou em terceiro lugar no Prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônicas, com Olhos d;água.

No ano passado, quando a Flip homenageou Lima Barreto (o segundo autor negro na lista de homenageados da festa, depois de Machado de Assis), ela também estava entre os convidados. ;As autoras negras não eram lembradas, ou eram lembradas muito pouco. Hoje, a gente tem participação maior nos eventos literários;, diz. ;Nossa presença tem se dado com mais constância, porque a gente tem sido convidada, mas também temos ficado mais atentas. Na medida de nossas possibilidades, procuramos participar. E, independentemente desses eventos literários, temos formas coletivas de nos organizarmos.;

Aos 71 anos, ela acredita que escrever e contar histórias é a melhor maneira de enfrentar o preconceito. Agora, trabalha em dois romances e um livro de contos e se sente perseguida por duas ideias que ainda vai executar. Uma delas é escrever um romance que mergulhe em histórias da escravidão. Não um romance histórico, mas uma ficção com pitadas de história, coisa que sempre esteve presente na obra de Conceição. Seus dois primeiros romances, Ponciá Vicêncio e Becos da memória, foram inspirados em histórias contadas pelos velhos da família. Ali, narrativas herdadas do período da escravidão eram comuns e faziam parte de experiências muito recentes. Outra ideia que a persegue é a vontade de escrever ensaios sobre livros de autoras negras. ;Isso é um compromisso que quero cumprir. Hoje, tenho um lugar no qual o fato de eu ler um livro e fazer um ensaio, uma crítica, ajuda a visibilizar esse livro. E quero fazer isso. Como um ato político mesmo;, avisa a escriotora, que conversou com o Correio sobre preconceito e voz negra na literatura.


Entrevista/ Conceição Evaristo

O mercado literário também sofre com o racismo? Há um reflexo do que se vive na sociedade?
Sim, há reflexo. Sem sombra de dúvida existe esse imaginário em relação às mulheres negras, que é um imaginário que, normalmente, não nos coloca como sujeitos produtores de saber, sujeitos produtores de determinada arte. A literatura, até hoje, está nas mãos de homens e homens brancos. Quebrar com esse imaginário que coloca as mulheres negras no lugar de subalternidade e não acreditar nessas mulheres como potentes também na escrita causam um desinteresse no mundo literário.

Como enfrentar isso?
Acho que escrevendo, contando essas histórias. Eu já tive oportunidade de cruzar com vários escritores brasileiros em eventos literários e poucos desses escritores me cumprimentam. E são meus pares. O prêmio Jabuti parece que me legitimou entre os autores. Alguns são gentis, independentemente de qualquer coisa, mas há outros que só passaram a me olhar depois do prêmio Jabuti. Por uma questão de racismo mesmo. De duvidar que uma mulher negra possa produzir literatura e possa estar no mesmo patamar que ele. E é um racismo que está na estrutura da sociedade brasileira. Há poucos negros no alto escalão da política brasileira, poucos negros dirigindo empresas, poucos negros no alto escalão do Exército. Há lugares que parece que são predestinados para os sujeitos brancos. Nós, negros, acabamos sendo minoria quando chegamos a esses lugares.

Chegar à escrita foi difícil para a senhora? Foram muitos olhares lhe dizendo que aquilo não era para a senhora?
Não, até que não, porque o primeiro lugar de recepção da minha obra foi junto do movimento negro. Foi essa militância do movimento social, de homens e mulheres, que primeiro recepcionou minha obra. Se teve um grupo social que legitimou minha literatura, primeiramente, foi o grupo dos meus iguais. Depois, muito por causa dessa legitimação, homens e mulheres começaram a levar meus textos para a sala de aula, para pesquisas acadêmicas. Quando alguns textos meus começam a ser traduzidos, isso chamou a atenção dentro do Brasil. Mesmo assim, em 1995, Miriam Alves, Geni Guimarães e eu, que somos escritores negros, fomos convidados para um evento em Viena junto com Marina Colasanti, João Ubaldo Ribeiro e Nélida Piñon, que não foi. Esses escritores negros estiveram nesse mesmo evento, participaram das mesmas mesas, estiveram nos mesmos hotéis. Quando voltamos, não tivemos uma nota da mídia falando desses escritores negros, mas se falou sobre os outros dois.


Na introdução de Ponciá Vicêncio, a senhora fala que seus personagens são como parentes de primeiro grau. Como isso funciona?
Na verdade, faço uma brincadeira. Um texto literário é como se fosse um filho e alguns personagens, conheço mais de perto. Minha ficção tem muito a vida real como pano de fundo, mas isso não significa que tudo que eu escreva seja algo que tenha vivido. Não é. Pode ser uma observação, uma história que ouvi contar, um fato que assisti. E Ponciá Vicêncio, ao trazer a memória da escravidão, é algo que tem a ver com as histórias que cresci ouvindo da escravidão. Como tem também em Becos da memória. São histórias herdadas da oralidade. Muito da memória da escravidão foi contada na minha infância, eu escutava essas histórias dentro de casa.

E como cria os personagens?
Tenho muito cuidado na construção dos meus personagens, não quero criar personagens negros estereotipados como se vê na literatura brasileira de um modo geral. Quero dar a essas personagens um humanismo que a outra literatura, de um modo geral, retira. Ponciá Vicêncio, além de ter o drama dela, que é o drama coletivo dessa procura pela ancestralidade negra, é uma personagem muito só. E a solidão é característica do ser humano. E colocar essa problemática da solidão numa personagem negra é alçá-la ao lugar da humanidade que sempre tivemos e que nos é retirada. Cuido do personagem, como cuido da linguagem.