Diversão e Arte

Sebastián Lelio, premiado cineasta chileno, expõe cultura latina no cinema

Diretor de 'Desobediência' demonstrou que não tem medo de abordar questões polêmicas

Ricardo Daehn
postado em 30/06/2018 07:35
Diretor de 'Desobediência' demonstrou que não tem medo de abordar questões polêmicas
Por um cinema que gere transformações no dia a dia, o diretor chileno Sebastián Lelio comprova que tem o dom de se empenhar e, mais do que isso: sabe ganhar recompensas que extrapolam a vaidade de colecionar os prêmios conquistados, entre os quais, o Oscar de melhor filme estrangeiro com o longa Uma mulher fantástica. ;Em cada projeto tento me envolver com todo o meu ser e, ao escolher um tema, quero sair do meu lugar ; deixo ainda mais aprofundados meus ideais. É da emoção que obtenho a energia para poder dedicar dois anos da minha vida a cada filme. Não conduzo nenhum projeto como mero exercício profissional. Trato cada projeto, pelo que é: um pedaço da minha própria vida;, conta, ao Correio, o diretor de Desobediência (em cartaz na cidade).

Vencedor do prêmio de melhor roteiro, no Festival de Berlim de 2017, Lelio fez do longa Uma mulher fantástica um emblema involuntário a favor do respeito à diversidade de gênero, influenciando até a política chilena. Algo nem tão distinto em termos de conquistas: no Festival de Locarno, em 2010, ao retratar uma crise em meio a terremoto, faturou prêmio ambiental ,há cinco anos, em Berlim (com o longa Glória) ; ao falar de satisfações da terceira idade ; faturou o Prêmio do Júri Ecumênico e propiciou para a colega Paulina García o Urso de Prata de melhor atriz.

Por que escolheu examinar o contexto do judaísmo no filme Desobediência?
Interessei-me pelos dilemas humanos dos personagens, antes de qualquer coisa. Ambientei a trama em uma comunidade judaica ortodoxa porque é uma sociedade que vem se tornando, por milhares de anos, um grupo progressivamente mais sofisticado. Traz sua música, seu Deus, suas vestimentas e que tem suas tradições. É um mundo muito rico em termos de tradição e de expressão. Mas tratei a comunidade como um mero veículo para acolher conflitos dos personagens que querem viver um amor proibido. Nisso, se apegam ao exercício urgente da desobediência. Eles têm estatura universal. Foi um luxo desvendar os mecanismos da vida hermética de judeus desconhecidos até mesmo pelos londrinos. Como em qualquer grupo, há formulação de luzes e sombras. Mas, no filme, as forças antagônicas brotam mesmo dos personagens que trazem limitações. O nível de crença tolhe a todos eles. Somente desobedecendo a si, alçam evolução tanto enquanto indivíduos ou mesmo inseridos na coletividade.

O fato de você ter nome de santo ajuda na difusão de mensagens positivas no cinema?
Não (risos). Não; na verdade, acredito que o cinema não apresente mensagens. O cinema é uma experiência, e não traz este fim de repassar mensagens. Para elas escoarem, temos a pedagogia, a política. O cinema é uma viagem que tem em si muitas dimensões que coexistem. Vejo o cinema como um animal, vivo e poliédrico, no qual instalamos quesitos estéticos e políticos. Dimensão filosófica, autoral, humana, narrativa e ainda um caráter de urgência. Disto tudo é que resulta a experiência do cinema.

Existe comodidade na relação entre os protagonistas de Desobediência?
Os três personagens estão em meio a encruzilhadas e dilemas evolutivos. Ficam debaixo de grande pressão, de modo que podemos perceber que, independente do caminho que tomem, terão preços a serem pagos. Pouco a pouco, eles revelam que, sim, estão dispostos ao pagamento. Eles compartilham de decisões aproximadas. Justo Dovid (o marido traído), virtualmente a mais fraca ponta do triângulo amoroso, iça voo, a ponto de solucionar o que será o clímax do filme. Ele representa a masculinidade rara de se ver no cinema. É um rabino, estudioso, intelectual, um místico que não apenas ama a sua mulher e o seu Deus. Ele tem ferramentas emocionais para enfrentar dilemas e reage sem impor medo, mas reforçando a qualidade de seu amor.

Como Daniela Vega, a atriz trans de Uma mulher fantástica, impactou os espectadores?
O gesto de elencar uma atriz transgênero para um papel também de expressão trans acabou se transformando num dos elementos mais potentes do filme Uma mulher fantástica e trouxe grande simbolismo. A presença dela, no filme, oscila, a cada momento, perante o espectador. O espectador vê o masculino e o feminino, ao mesmo tempo. Daí, veio o poder do filme que trouxe uma emoção diferenciada. Em meio a todos os jogos e artifícios da trama, o próprio filme é trans, no sentido até mesmo de gênero cinematográfico: o filme parece realista, mas está muito longe disso. No centro do longa, há a autoria moral de um coração palpitante que está em Daniela e que imprime incomparável dimensão humana.

A honra aparece como um elemento forte para você, não?
A bem da verdade, cada vez menos tenho me importado com a honradez, e o que mais valorizo é a força de uma obra. Os filmes não são obrigatoriamente bons ou ruins. Filmes devem ter a capacidade de jorrar da tela e avançar no tecido social, entrar na vida, ressoar, de estarem na mesa de debates, de terem vida própria e, com sorte, de se impregnarem no imaginário coletivo. Honra é chegar a este ponto. Despertar leis relacionadas a gênero foi um das honras do filme Uma mulher fantástica. Estacionada, há cinco anos, para apreciação do Congresso chileno, a lei alçou voo por uma luta coletiva. O Oscar de melhor filme estrangeiro para Uma mulher fantástica, veio o impulsionar a luta, e a presidente Michelle Bachelet reativou a lei que, agora por um governo de direita, tem sido examinada. Esperamos que os políticos estejam à altura e aprovem uma lei demandada há tempos pelos chilenos.

O cinema chileno tem se aperfeiçoado por quais motivos?
Sou um verdadeiro admirador desta valorização do cinema chileno ocorrida nos últimos 10 anos. Sou uma pessoa que preza questões relacionadas às raízes. Sempre fui devoto do histórico levado pelo cinema chileno. Entre 1965 e 1973, o cinema chileno teve a riqueza pela qual seguimos vivendo, a partir das lágrimas e das atitudes que foram truncadas com a ditadura. As ideias que tentaram ser aniquiladas foram retomadas pela geração que, ainda muito pequena, nos anos de 1990, teve por representantes Patrício Guzmán e Raoul Ruiz, realizadores, à época, medianos como Andrés Wood e ainda pelos menores, como Pablo Larraín e até eu mesmo. Correspondemos, numa cinematografia que operava em diferentes tons: do cinema de ensaio até o mais comercial. Com todas as dificuldades, e com pouco apoio do Estado, temos avançado e nos tornado mais potentes. Seguem, entretanto, os entraves e torcemos para que filmes passem pelas correntezas e despertem o interesse internacional: é uma batalha incorporada por nossa academia de cinema que, por sinal, foi criada ainda há pouco.

Por que Hollywood tem se mostrado tão interessada nos realizadores latinos?
Não sou um especialista em Hollywood, mas me parece um meio que se adapta e também se modifica, às vezes com uma velocidade impressionante. Acho que, por agora, estão num momento de grandes transformações. Vejo que eles estão com a crença de que é possível avançar, e desenvolver projetos diversificados. Eu tive apenas uma experiência, formulada na Inglaterra, com atores que podem ser dados como hollywoodianos. Rachel Weisz (O jardineiro fiel) é inglesa, Rachel McAdams (Spotlight) é canadense e Alessandro Nivola (Jurassic Park III) é norte-americano. Nesse âmbito anglicano, no qual filmamos, tive toda a liberdade do mundo ; acredito que isso acompanha meus projetos. Tive muita sorte, por envolver-me com as pessoas certas. Não teria nenhuma vontade de estar em filmes incapazes de expressarem ideias e energias vinculadas à liberdade injetada no meu tipo de cinema.

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