Muitos leitores nem desconfiam, mas Hilda Hilst é uma das autoras preferidas de Daniel Galera. O autor de Barba ensopada de sangue lembra que começou a ler a obra de Hilda quando era aluno da Oficina de Criação Literária da PUC/RS, um reduto de formação de jovens escritores brasileiros. Foi fisgado por Fluxo ; Floema, primeiro livro de ficção da escritora, publicado em 1970. Antes, havia se deparado com os poemas de Presságio, mas não se empolgou muito. ;Acho que não entendi bem de primeira, talvez não tenha batido;, conta Galera. ;Então, comprei o Fluxo ; Floema num sebo e, aí sim, fui ler. Naquele momento, o texto da Hilda me atingiu em cheio, fiquei muito animado, entusiasmado com o jeito que ela escrevia, com o tipo de ideia que ela expressava, com a ousadia da forma do texto.;
Esse fascínio acompanhou Galera a vida inteira e o levou em direção a outras leituras, coisas indicadas pela própria Hilda em citações e epígrafes. Foi uma escolha, portanto, natural da poeta e editora Alice Sant;Anna para o posfácio de Da prosa, caixa com dois volumes da prosa completa de Hilda Hilst que a Companhia das Letras lança para esquentar as vendas na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), na qual a escritora será homenageada entre 25 e 29 de julho. Assinam ainda textos para o posfácio Carola Saavedra e o pesquisador Alcir Pécora.
[SAIBAMAIS]
Galera lembra que quando descobriu a obra da autora não era assim tão fácil encontrar os livros. Quem gostasse de frequentar sebos não teria problema, mas era preciso saber o que se estava buscando. ;Não é que fosse uma autora inacessível, mas é que tinha que fazer um pouco de esforço pra achar;, lembra. Editada inicialmente nos anos 1960 graças ao esforço pessoal de Massao Ohno, ela só começou a ganhar mesmo as prateleiras das livrarias com algum destaque quando passou para a Editora Globo, por volta de 2000. Considerada de difícil compreensão e um tanto obscura, a autora teve os livros recusados por alguns editores, especialmente quando embarcou na fase erótica que rendeu livros como O caderno rosa de Lory Lamb e A obscena senhora D.
Galera a conheceu antes de as reedições ajudarem a espalhar a prosa e a poesia de Hilda. ;É uma autora que conviveu comigo desde 1999, quando comecei a ler, e se tornou uma das minhas autoras favoritas, principalmente na prosa;, conta o gaúcho. ;Algumas pessoas talvez se surpreendam um pouco, em função da imagem que fazem de mim ou de terem lido meus próprios livros, que a Hilda seja uma das minhas autoras favoritas. Mas é verdade. E acho que, quando a gente é escritor, não necessariamente nossos autores favoritos influenciam de forma significativa nossa maneira de escrever. Tenho uma sintonia com ela em algumas das questões que gosta de investigar;, avisa Galera, que gosta especialmente da maneira como a autora fala sobre a morte e como trata a espiritualidade.
Personagens femininas
Para Carola Saavedra, autora do premiado Flores azuis e do recém-lançado Com armas sonolentas, a ligação com Hilda se dá particularmente pelas personagens femininas. É sobre elas o projeto de pós-doutorado que ela prepara com a intenção de estudar a construção das personagens femininas da escritora e compará-las com as da austríaca Elfriede Jelinek.
;É um dos aspectos mais interessantes da obra dela, pelo menos pra mim. E também é muito atual;, avisa Carola. ;Nas entrevistas, e a gente tem sempre que pensar que a Hilda dando entrevista é uma performance, muitas vezes o que ela diz é debochado, muito irônico. Perguntam para ela por que as personagens femininas de seus livros são burras e chatas e ela fala ;porque não me interesso pelas mulheres, porque elas são chatas, são burras mesmo, não são capazes de pensar em termos mais profundos;. Claro que isso é um deboche. Por outro lado, a verdade é que, com exceção de A obscena senhora D, ela coloca as mulheres com esse estereótipo mesmo.;
Carola lembra que é preciso compreender o tempo da autora. Hilda Hilst tinha uma relação especial com suas personagens femininas e dizia que não gostava muito delas. A única com quem realmente conseguia conviver era a Hillé, de A obscena Senhora D.
Hilda nasceu em 1930 e morreu em 2004. Começou a escrever e publicar em uma época na qual as mulheres sequer podiam votar. Escolheu a literatura ao casamento, embora tenha se casado, e uma vida reclusa à atuação social que dela era esperada. Filha de um jornalista esquizofrênico, trocou a vida social agitada em São Paulo pela Casa do Sol, uma chácara no interior do estado na qual foi morar em 1966 com a intenção de se isolar para escrever sua literatura.
É preciso saber disso para entender sua fala. Em 15 edições, Hilda é a terceira mulher homenageada na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). É pouco, embora seja mais do que no quesito cor: Lima Barreto foi o primeiro negro, homenageado na festa do ano passado. ;Hilda é filha de seu tempo, um tempo em que uma mulher escrever e ser levada a sério era difícil. Ela não queria se colocar naquele lugar de ;estou escrevendo sobre temas femininos;. Ela queria se colocar num lugar de ;quero falar dos grandes temas, da busca de Deus, de filosofia, da morte, quero ser levada a sério;. E ela viveu em um tempo em que isso era tão difícil que ela se colocava como homem;, diz Carola.
Encantamento
Essa liberdade é um dos aspectos que provocaram o encantamento de Daniel Galera. Ele aponta que Hilda não se alinha muito com as questões de liberdade individual e identitárias presentes no discurso cultural dos dias de hoje. Ela pode ser libertária em vários sentidos, especialmente em relação ao corpo, à velhice, à liberdade da mulher de pensar, de agir. ;Mas muitos de seus personagens femininos são caricatos, subservientes e vistos de uma forma que não é politicamente correta. Ela tem uma voz muito livre, diz o que quer e não tem preocupação em ferir sentimento das outras pessoas. O que é uma coisa um pouco diferente do tom de escrita libertária que se procura hoje em dia, na qual a preocupação com atingir ou ofender a sensibilidade alheia é muito forte;, diz Galera. ;Acho isso muito mais empolgante e salutar do que o tipo de discurso libertário regrado que impera no ambiente cultural atual.;
Da prosa vem acompanhado de dois livrinhos de poemas, apostas comerciais para aproveitar o potencial de vendas da homenagem da Flip. Júbilo, memória, noviciado da paixão, publicado em 1974, sai agora pelo selo de poesia de bolso da Companhia, e De amor tenho vivido traz 50 poemas sobre um dos temas mais presentes na obra da autora. ;A poesia dela tem alguns temas principais, que se repetem, como o amor, a morte, o tempo passando. E ela fala muito sobre essa convicção de que as coisas são passageiras. E muito sobre o amor, sobre esse desejo ardente, a vontade de encontrar o amado. Ao mesmo tempo, ela sabe que esse encontro é efêmero;, aponta Alice Sant;Anna.
Para a editora, Hilda é uma voz importante no Brasil contemporâneo, especialmente quando desafia as convenções. Ela foi transgressora em muitos aspectos ; escolheu viver para a literatura e escrever de forma ousada em uma época em que as mulheres sequer votavam ;, inclusive na experimentação da linguagem, mas sua obra começou a ser mais difundida e reconhecida no início do século 21. Nascida em Jaú, no interior de São Paulo, publicou o primeiro livro de poesia, Presságio, nos anos 1950, e embarcou na prosa duas décadas e oito livros de poema depois, em 1970, com Fluxo;Floema. A homenagem da Flip faz a autora subir mais um degrau na escada do reconhecimento ao movimentar o mercado editorial ao ser integralmente reeditada.
Da prosa
De Hilda Hilst. Companhia das Letras, 888 páginas. R$ 89.90
De amor tenho vivido ; 50 poemas
De Hilda Hilst. Companhia das Letras, 96 páginas. R$ 49,90
Júbilo, memória, noviciado da paixão
De Hilda Hilst. Companhia das Letras, 132 páginas. R$ 24,90
; Sempre tem aquela coisa das muitas vozes, de uma linguagem que ela vai estendendo, com a questão do bizarro e do poético, do profano e do místico que aparecem na mesma frase. A Hilda foi a descoberta de até onde a literatura pode ir;
Carola Saavedra
; A forma como ela descreve e investiga a morte tem bastante a ver comigo. É uma artista muito livre, uma voz importante num momento em que as vozes femininas estão sendo valorizadas e recolocadas;
Daniel Galera