Irlam Rocha Lima
postado em 17/06/2018 07:33
Em 1988, o Brasil era governado por José Sarney, a economia havia entrado em colapso, pós-Plano Cruzado, as exportações caíram drasticamente e as reservas cambiais foram esgotadas. Na televisão, o programa de maior sucesso era a novela Vale tudo, de Gilberto Braga. As rádios FMs, tocavam à exaustão Que pais é este?, o hit do momento e nome também do terceiro LP da Legião Urbana, a banda que saiu de Brasília para se tornar o grande nome do rock nacional.
O sucesso estrondoso da Legião, após três discos lançados, fez de Renato Russo, Dado Villa-Lobos, Renato Rocha e Marcelo Bonfá os novos ídolos dos brasilienses. Músicas como Será, Geração Coca-Cola, Ainda é cedo, Tempo perdido, Índios e Eduardo e Mônica faziam parte do set list básico dos jovens daquela geração. E a elas se juntaram Faroeste caboclo e Angra dos Reis, as músicas de maior destaque do novo álbum, ao lado da faixa título.
Desde que foi anunciado o show de retorno da banda à capital, um ano e meio depois de lotar por duas noites a Sala Villa-Lobos e o Ginásio Nilson Nelson ; numa série de três apresentações ; para um megaconcerto no Estádio Mané Garrincha, era enorme a expectativa em todos os cantos do Distrito Federal. Não foi surpresa para ninguém a presença de um público de 50 mil pessoas na friorenta noite de 18 de junho de 1988 para assistir àquele show, que se tornaria histórico por diferentes razões.
[SAIBAMAIS]
A primeira delas tem a ver com o fato de, até então, nenhum artista ter reunido na cidade, num espaço fechado, 50 mil pessoas. A outra foi o badernaço provocado pela recusa de Renato e banda de voltarem ao palco, após quase serem atingidos por objetos e bombinhas de são-joão, arremessadas da plateia.
Documentários
Em consequência disso, os equipamentos de som foram quebrados pelos fãs mais exaltados. Cenas de violência explícita ficaram registradas, igualmente, fora do estádio, culminando com o confronto entre parte dos espectadores e policiais militares. Ônibus foram destruídos e dezenas de pessoas feridas. Cenas do tumultuado concerto ganharam registro, posteriormente, em dois documentários: Rock Brasília ; Era de Ouro, de Vladimir Carvalho; e Dê-me abrigo, de Ana Carolina Bussacos, Jania Bárbara de Souza e Beatriz Leal.
Dado Villa-Lobos, que desde 2015 faz turnê ao lado Marcelo Bonfá, para celebrar os 30 anos do LP de estreia da Legião, ao falar sobre o show do Mané Garrincha, a pedido do Correio, foi lacônico: ;Minhas lembranças estão registradas no livro Memórias de um legionário. Eu me lembro bem do palco pelos mais de 60 minutos que lá ficamos. Bombas explodindo, alambrado despedaçado, invasão e mais bombas explodindo do meu lado; e depois de uma noite em claro, hostilizado no aeroporto, no caminho de volta pra casa;.
Um dos produtores do show, Rodrigo Amaral, que estreava nessa função naquela oportunidade, afirma enfático: ;Apesar dos problemas ocorridos e dos aborrecimentos vividos, vivenciamos um evento que entrou para a história de Brasília e do rock brasileiro;. Ele recorda que houve críticas em relação à altura do palco, mas justifica: ;Veio da própria produção da Legião, representada pelo Rafael Borges, o pedido para que fosse mais baixo, a fim de deixar a banda mais próxima do público;.
Rodrigo faz questão de deixar claro que era da banda o segurança do palco. ;Foi ele quem permitiu o acesso do fã, de cadeira de rodas, que agarraria o pescoço do Renato;. O produtor acrescenta que naquele tempo não se usava barricada como proteção de palco. O alambrado instalado acabou cedendo, diante da pressão das pessoas que estavam na parte frontal do palco. Tomei como lição, para não repetir as falhas cometidas naquele show;.
Orgulho
Presente ao show, Romero Pedrosa, economista e servidor da Telebras, que à época tinha 21 anos, até hoje é fã da Legião Urbana e, em especial, de Renato Russo. A primeira apresentação da banda que assistiu foi em 1983, no Clube do Servidor, com abertura da banda Obina Shok. Depois marcou presença num dos shows na Sala Villa-Lobos.
;Quando cheguei ao Mané Garrincha, em 18 de junho de 1988, vivia um sentimento que misturava expectativa e orgulho. Orgulho por ver uma banda surgida em Brasília, alcançar o mais alto patamar do rock brasileiro, capaz de reunir 50 mil pessoas num estádio;, destaca. ;Assistia ao show da arquibancada e percebi, logo que o Renato começou a cantar Que país é este?, o começo de um tumulto no gramado, em frente ao palco;, rememora Pedrosa.
Segundo ele, o discurso do Renato, após o estouro de uma bomba, próximo aos pés do cantor, aumentou a confusão. ;Mas, o mais determinante para aumentar a baderna, foi a decisão da banda de não voltar para o bis. Como testemunha de tudo o que ocorreu naquela noite, me vi, desde então, como personagem de um dos maiores momentos do rock no Brasil e da história de Brasília;.
DEPOIMENTO
Carmem Teresa Manfredini, irmã de Renato Russo
;No dia do fatídico show do Mané Garrincha, meu irmão estava de bom humor, diferentemente de outros shows, em que ficava nervoso antes de subir ao palco. Ele se hospedou com a banda no Hotel Saint Paul. Quando cheguei ao estádio, fiquei numa espécie de chiqueirinho, um local reservado para os amigos e jornalistas.
Achei o palco muito baixo e pequeno e não tinha ideia da tensão que já dominava o ambiente, com pessoas quebrando vidros de ônibus, por exemplo.Obviamente, o governo do Distrito Federal e a produção local subestimaram o número de pessoas que iriam ao show e, além disso, não houve organização e infraestrutura corretas.
No decorrer do show, a tensão foi se agravando, com Renato, que era ariano, despejando opiniões que estava tendo naquele momento. Quando um homem subiu ao palco e o agarrou pelo pescoço, imobilizando-o, eu fiquei com medo pela segurança física dele.
Sabia que, dali em diante, o show não iria ser bom, mesmo que eles continuassem até o fim. E foi o que aconteceu. Muito nervosismo, bombinhas no palco. Conhecendo o meu irmão, percebi que ele acabaria drasticamente com aquilo.
Quando saíram do palco e não voltaram, deu-se o caos. Eu me lembro de termos saído por uma passagem subterrânea e ficarmos por um tempo numa espécie de sala. Os fãs gritavam para que voltassem, mas, mesmo que a banda quisesse voltar ao palco, o meu irmão não voltaria, orgulhoso que era.
Fomos para o hotel com uns amigos, mas ele, muito abalado, decidiu ir para o nosso apartamento na 303 Sul. Queria escapar do assédio e das possíveis agressões, que viriam realmente a acontecer. Os nossos pais estavam no Rio de Janeiro.
Duas amigas em comum tinham vindo para show e estavam hospedadas comigo.
Ele começou a sair do estado de agitação e começou a ficar deprimido e muito preocupado com o que tinha acontecido, se havia mortes, etc. Preparamos a banheira com água quente e sal grosso e ele ficou nesse banho por um bom tempo, e foi dormir no quarto dos nossos pais, enrolado com um cobertor até a cabeça.
O telefone não parava de tocar: amigos, jornalistas, mas também vozes de homens, ameaçando jogar bombas no apartamento e matar o meu irmão. O porteiro estava instruído a não deixar ninguém subir sem identificação. Alguns amigos vieram.
Quando ele decidiu ir embora, tivemos a ideia de sair pela entrada da garagem e seguir para o aeroporto, fugindo, literalmente. Ele foi escoltado pelo Murilão, um amigo, até a área VIP.
Antes de falecer, o meu irmão ensaiou uma volta para um grande show em Brasília, mas acho que ficou reticente, com medo da reação do público. Tornou-se algo mitológico alguém ter ido ao show do Mané Garrincha. Apesar de toda a conjunção de erros, foi um ponto divisor na carreira da Legião e do meu irmão. Dali em diante, ele percebeu a dimensão do sucesso da banda no país e teve a responsabilidade, cada vez maior, pelas letras que escrevia e os efeitos que causavam e, ainda hoje, causam nas pessoas.;