Entre o nascimento de Betina, há 11 anos, o de Em;lia, há seis, e o de Flora, há quatro, muita coisa mudou na vida e no trabalho da professora e artista plástica Luísa Gunther. No cotidiano, as mudanças foram óbvias. No trabalho, elas vieram aos poucos. À medida que as meninas cresciam, Luísa incorporou a performance, que não praticava até então, como linguagem complementar à pintura e ao desenho.
Tinta e pincel também apontaram uma mudança na prática de Marta Mencarini após a chegada de Athena, há pouco mais de um ano. A artista, que não pintava há muito tempo, deixou um pouco de lado o coletivo Mesa de Luz, ao lado do companheiro Hieronimus do Vale e do artista Tomás Seferin, e voltou à pintura.
No trabalho de Raquel Nava, a maternidade trouxe a perspectiva de novos materiais. Os brinquedos de Tito começaram a dar ideias à artista. No caso de Clarice Gonçalves, a chegada de Hector, há quatro anos, levou a pintora a refletir sobre papéis desempenhados pelas mulheres, desigualdade e cobranças sociais, o que motivou um trabalho premiado pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC).
Se a maternidade muda as pessoas, é capaz também de dar novos rumos à produção artística daquelas que a experimentam. É o que tem acontecido com os trabalhos de Luísa Gunther, Marta Mencarini, Raquel Nava e Clarice Gonçalves: há novidade no que vem saindo do ateliê dessas artistas.
Identidade
Luísa viu a performance entrar em sua vida por dois vieses. Casada com o bailarino Ary Coelho, morto em 2017 em decorrência de um câncer, a artista e professora da Universidade de Brasília (UnB) começou a fazer performances de dança ao lado do marido. As filhas faziam os registros do material, que virou uma série chamada pela família de Fotodança. Aos poucos, as crianças passaram a fazer parte das performances. Incluí-las foi uma maneira de estarem todos juntos enquanto os pais trabalhavam e deu uma identidade à produção.
Até então, pintura e desenho constituíam boa parte da produção de Luisa. Filhos, a artista explica, trazem uma limitação de tempo natural, mas também uma sensibilização em relação aos objetos e ao ambiente. Objetos que não faziam parte do cotidiano, como brinquedos, passam a integrar o cenário. ;Eles resgatam o lúdico, que é tão complicado hoje na arte;, admite Luísa.
Falar do lúdico na arte faz muitos artistas estremecerem com medo de que seus trabalhos não sejam levados a sério. É um sintoma, Luísa acredita, da maneira como a sociedade brasileira encara a própria arte: algo que não é sério. Ela não se importa de ver esse adjetivo associado ao seu trabalho. ;No meu caso, comecei a usar trabalho infantil;, aponta. Betina, Flora e Em;lia mudaram a produção da mãe e passaram a fazer parte do produto.
Impacto
Os brinquedos trazidos por Tito e a própria prática da maternidade também causaram impacto nas fotografias de Raquel Nava. Durante a gestação, ela precisou se afastar do laboratório de taxidermia do Museu de Anatomia da UnB, no qual aprendia técnicas para aplicar em seus trabalhos. Raquel produzira uma série de imagens com bichos empalhados, mas os produtos químicos utilizados nesse processo eram nocivos para o desenvolvimento do bebê.
Quando ele nasceu, Raquel passou a olhar para os brinquedos de forma diferente. ;Passei a levá-los para uma atmosfera obscura, da ironia, do sarcástico. Não são brinquedos assustadores, mas, dependendo do contexto, eles podem ficar bizarros;, avisa. Uma vaquinha de plástico sobre um tapete de couro de vaca ou um porquinho junto a um pedaço de presunto resumem a ironia da artista. ;Eu me deixo contaminar pelos objetos e fiquei pensando que, nas nossas interações, temos pouco contato com os bichos. Muitas crianças nunca veem um animal.;
Retorno
A volta à pintura foi quase uma urgência depois do nascimento de Athena. Marta Mencarini, que há muitos anos não pintava, sentiu necessidade de voltar à simplicidade do papel e do pincel. As reflexões sobre a maternidade, sobre a feminilidade e sobre o feminino que passaram a se instalar na cabeça da artista precisavam de um veículo delicado e gestual. As técnicas de aquarela e guache davam conta da delicadeza do momento e Marta começou a pintar manchas, formas ora geométricas, ora orgânicas, linhas e traços para acompanhar os textos que passou a escrever.
A intenção inicial era fazer um livro para Athena, mas o projeto cresceu. Agora, Marta quer editar o material em livro. ;Comecei a entrar na produção de textos por causa de uma vontade forte de falar o que estava acontecendo comigo;, conta. ;É um trabalho que está em processo e tem a ver com um resgate da pintura, que para mim tem uma coisa orgânica e é um processo de fluxo, de culinária mesmo, de escolher os ingredientes e ir fazendo. Tem muito a ver com o feminino.;
Temáticas
Clarice Gonçalves acredita que a maternidade mudou o jeito como produz. Primeiro, por uma questão de tempo. ;Eu me vi forçada a dar uma condensada na temática, no momento, o que eu queria trazer para a tela, as questões;, explica. Temáticas como o feminino e a maternidade estão presentes no trabalho de Clarice há mais de uma década, desde que sua mãe engravidou da irmã caçula. Mas quando a artista se tornou mãe, outras questões foram incorporadas.
As cobranças da sociedade, as pressões, a discriminação do mercado de trabalho em relação a mulheres de forma geral se tornaram alvo de pesquisa. Em projeto selecionado no Fundo de Apoio à Cultura (FAC), ela está pesquisando as relações entre maternidade e loucura dentro do escopo gênero e saúde mental. ;Estou produzindo algumas obras e cerceando esse tema com mais foco e sagacidade pra fazer essa mostra que vai ser um momento em que vou estar, de uma forma catártica, trazendo meus próprios processos, minha experiência, minha vivência enquanto mãe nesse contexto social em que a gente vive;, avisa.