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Após 130 anos, sociedade ainda reproduz modelos dos tempos de escravidão

Já se vão 130 anos que a Lei Áurea foi assinada. No entanto, a sociedade brasileira continua a recriar modelos instaurados em um dos períodos mais tenebrosos da história do país

Nahima Maciel
postado em 13/05/2018 07:30
Foi num domingo como o de hoje, há 130 anos, que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea. Não era o melhor projeto de lei. Era um projetinho simples, com dois artigos bem curtos que declaravam extinta a escravidão. De tão simplória, a lei sequer mencionava a maneira como a liberdade deveria se instalar ou as penas para aqueles que não a cumprissem.


Obviamente, nada dizia quanto à inclusão dos libertos numa sociedade que, havia mais de 300 anos, escravizava os povos trazidos à força da África. Havia outros projetos, menos irresponsáveis, que vislumbravam o impacto do ato na sociedade e na vida dos ex-escravos. Mas não foram aprovados pela Câmara e pelo Senado. E foi assim que o Brasil seguiu adiante para se tornar uma das sociedades mais desiguais da América Latina.
[SAIBAMAIS]
;O Brasil não só foi o último país a abolir a escravidão mercantil, porque tiveram outras formas de escravidão, como a Lei Áurea foi muito conservadora. Na época, existiam debates para todos os lados e não houve nenhum projeto de inclusão dessa população;, repara a historiadora Lilia Moritz Schwarcz. Portanto, olhar para o país hoje sem levar em conta os mais de três séculos de escravidão é o mesmo que olhar para a África sem considerar os mais de 600 anos de colonização europeia.

O tema é um dos mais abordados da historiografia brasileira e não falta, de fato, material para quem estiver disposto a mergulhar num dos períodos mais tenebrosos da história nacional. Mas como ;mais sempre é mais;, fórmula de que Lilia gosta muito para responder a certas perguntas, vamos ao mais recente e precioso lançamento sobre o tema.

Organizado pela própria Lilia e por Flávio dos Santos Gomes, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Dicionário da escravidão e liberdade traz 50 textos críticos reunidos em verbetes que abordam as mais variadas questões ligadas à escravidão. Para além das grandes lavouras, ponto de partida do qual se costuma estudar o tema, os historiadores queriam destrinchar subtemáticas no intuito de explicar por que é mais correto falar em escravidões, no plural. ;A ideia foi mesmo oferecer um painel ampliado dos complexos Brasis da escravidão e da liberdade. Sair das imagens cristalizadas do açúcar, mineração e café;, avisa Gomes.

Cartão-postal de Rodolpho Lindemann

Compreender essas diversas realidades apontadas nos verbetes é também uma maneira de refletir sobre o Brasil de hoje. ;O racismo, as desigualdades e as hierarquias raciais do Brasil do século 21 são marcas de um passado entre memórias reveladas e silenciadas. Se, no passado, a escravidão era uma linguagem para além da dimensão econômica, hoje o negro é um lugar social, naturalizado e descriminado de subalternidade, exclusão e não cidadania;, lamenta Gomes.

Assim, o dicionário, feito em colaboração com pesquisadores de todo o Brasil, explora, por exemplo, questões de gênero, infância, escravização de indígenas, imprensa negra, arqueologia, letramento entre os escravos e, claro, os processos que levaram à abolição. Como se davam os mecanismos da escravidão em cidades como São Luís e Porto Alegre, capitais distantes dos grandes centros urbanos normalmente mais estudados, também está no livro. Aos autores preocupou construir a noção de que o sistema idealizado pelos colonizadores acabou por criar um eixo Atlântico-África. E mostrar que as revoltas foram muitas e começavam no continente do qual os negros eram arrancados.

Movimento pioneiro

As lutas abolicionistas não tiveram como protagonista a princesa Isabel e sua Lei Áurea. Também não se encerraram nela. O movimento foi, segundo os autores do dicionário, o primeiro de cunho social no país. E foi protagonizado por figuras que vão desde o advogado Luís Gama, negro liberto, que se oferecia para defender judicialmente os escravos, até figuras anônimas, como os caifases, que recrutavam rebeldes nas senzalas das grandes fazendas.

;A valorização do evento da Corte com a assinatura da Lei Áurea com a princesa Isabel e de uma luta contra a escravidão feita exclusivamente no parlamento produziu a não memória, o não evento ou não acontecimento da luta abolicionista. Ao contrário, foi um movimento social intenso, mobilizando as senzalas, os escravos, os trabalhadores urbanos e até sociedades carnavalescas e bandas de música. O abolicionismo foi um movimento popular com a atuação de vários setores sociais, de jornalistas, a não letrados e operários. Interessante lembrar que até a década de 1930, o 13 de maio era feriado;, aponta Flávio Gomes. Como lembra Wlamyra Albuquerque, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em um dos 50 verbetes: ;(...) a luta pela liberdade não foi concluída em 1888; resta a construção da igualdade;.
4,8 milhões
total de africanos desembarcados no Brasil entre 1550 e 1850


14.910
total de viagens empreendidas pelos navios negreiros
Três perguntas para Lilia Schwarcz

Alberto da Costa e Silva diz que não se estuda a escravidão sem remorso e vergonha e que é difícil estudá-la como algo que ficou no passado. No caso do Brasil, você acha que a sociedade tem noção de que esse sistema repercute até hoje?
Eu penso que começa a ganhar noção. Mas ainda há muito a fazer. A escravidão foi uma linguagem que se enraizou perversamente no nosso cotidiano. Demorou, mas, desde os anos 1970 até o final da década, com a discussão dos direitos civis, com a força dos movimentos negros, com as políticas de cotas e ação afirmativa, a sociedade brasileira vai prestando atenção nessa nossa origem. Quando me perguntam o porquê do ensino obrigatório de África, eu sempre respondo que mais é mais. Não me parece que, para estudar África, seja preciso tirar a história europeia, porque, afinal, fomos colonizados por europeus. Também não precisa tirar a história norte-americana, afinal, sabemos o domínio que os Estados Unidos tiveram sobre o eixo americano. Mas por que não inserir África? Já que a população do Brasil é considerada, depois da Nigéria, o país com maior população composta por africanos e seus descendentes. Introduzir essas políticas tem feito com que, lentamente, a sociedade brasileira acorde para perceber como a escravidão não é um problema morto no nosso passado, mas que está sendo recriado no nosso presente.


O quanto, na sua opinião, a desigualdade no Brasil ainda é produto do sistema escravocrata?
Penso que é produto, mas acho que a atitude de apenas jogar a culpa no passado produz muita acomodação. Esses dados que temos visto e que têm definido a existência, no Brasil, de um racismo estrutural são dados que revelam como temos recriado políticas de discriminação pautada em raça e cor. Não se passa sem marcas pelo fato de que a população escravizada foi sistematicamente proibida de ter uma formação letrada. E depois, com nosso sistema complexo em que as melhores escolas de ensino fundamental e médio são privadas e as melhores universidades são públicas, percebemos que, na universidade, isso só pode ser vencido com políticas de cotas e ações afirmativas. Essas são decorrências, mas são também dados do nosso presente, se lembrarmos, por exemplo, que jovens negros têm 2,5% mais chances de morrer por assassinato violento do que jovens brancos. Isso é só uma decorrência da escravidão? Não. Mas é também. Porque tivemos uma pós-abolição terrível.


;(...) toda a legislação sobre o trabalho (...) foi feita sob o signo da escravidão. Estudos recentes chegam a sugerir que seria anacrônico o conceito de trabalho livre naquela sociedade;: Como isso se reflete no Brasil de hoje?
(A desvalorização do trabalho) nasceu ali, perdura e é recriada. É inegável que, no Brasil, a noção de trabalho ficou, em primeiro lugar, associada ao trabalho escravo. O que a escravidão nos legou como linguagem é uma sociedade com hierarquias e formas de dependência muito estabelecidas. E essa linguagem aparece nesse verdadeiro desprezo que os brasileiros têm pelo trabalho manual, que continua sendo associado a ;coisas de negro e pobre;. Até hoje produzimos uma invisibilidade social. Nós não vemos aqueles que trabalham. Muitas vezes, eles passam como se fossem invisíveis. Um bom exemplo é o quarto da empregada doméstica, que fica em um lugar invisível, ela está e não está, é a questão da margem e da fronteira. Há várias formas de invisibilidade. E esse tipo de invisibilidade está sendo vencido agora no nosso sistema.

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