Íntimo da linguagem literária, Maurício Melo Junior já publicou inúmeras resenhas, novelas, contos, teatro, crônicas, livros infantojuvenis de ficção e sobre cultura popular e dirigiu documentários, além de apresentar por treze anos o programa Leituras na TV Senado, em que entrevistou, centenas de autores brasileiros.
Seus textos e, principalmente, as novelas de Andarilho já prenunciavam um narrador de amplo fôlego. Maurício chega agora ao romance com Noites simultâneas. Mas não é um projeto recente. Em 1988, ainda numa máquina de escrever, surge uma versão em primeira pessoa com o título de Medo. Agora, digitada e reestruturada, a aventura de toda uma geração que viveu sob o tacão da ditadura militar é analisada e representada com toda a força por meio de personagens que não têm nome. Simbolizam assim todos os militantes que se entregaram totalmente à luta pela reconquista das liberdades democráticas.
Embora o recurso de não nomear explicitamente os locais onde ocorrem as ações não permita assegurar qual é o cenário da história, pode-se inferir que o núcleo da trama acontece no Nordeste, passando por Brasília. O protagonista ; o moço ; é filho de uma família de proprietários rurais e vai para a capital para se formar em medicina. É atraído pela namorada ; a moça ;para participar da militância contra a ditadura. Envolve-se no movimento de forma intensa, ignorando sua própria origem.
Quando os companheiros propõem uma retirada estratégica, ele se recusa e perde a namorada, de quem carregará para sempre a lembrança e a saudade. Engaja-se no esforço de conscientizar os trabalhadores para a resistência na zona rural. É preso e torturado. Quando sai da prisão, procura antigos companheiros de luta e volta à militância. Mas, quando assiste ao desbaratamento de um ponto em que morrem vários participantes de uma reunião na qual ele deveria estar, entra na clandestinidade, acreditando que a moça estaria entre os mortos.
Com nova identidade trabalha numa fábrica, onde mobiliza os trabalhadores para uma greve que fracassa. ;A vida é aquela plataforma em constante ondulação;. ;Estou irreversivelmente mergulhado num mar de dilemas e contradições, sinto o vazio, um silêncio de milhões de túmulos; minha vida vã ; renunciei à felicidade para dar felicidade à nação, e por fim somos dois infelizes;.
Entremeado de reflexões do protagonista, o texto revela o desencanto: ;Éramos a esperança de um futuro que não houve;. (...) ;Quanta bobagem dita e ouvida em reuniões vazias. ( ...) Nossa imaturidade cegava. Foram necessários tempos de insônia, duzentos anos de desesperanças para se rever e repensar o mundo;. Mas revela também uma visão positiva quando observa a plateia de jovens na palestra da ex-companheira: ;Plantamos em terreno fértil. Nossas carnes doeram sob o efeito da tortura física e moral. Arrancaram nossos sonhos e peles, mas conseguimos semear a esperança de uma vida justa.;
Mais que um enredo envolvente sobre a relatividade das utopias, Maurício constrói com artesania impecável uma narrativa em que se revezam suavemente diversos pontos de vista: ora o narrador é onisciente, ora em primeira pessoa, ora em discurso indireto livre. Na sua linguagem clara, elegante e poética, nos leva a refletir sobre a história do nosso país.
*Lucília Garcez é doutora em linguística e escritora