Mulher trans, a artista e quadrinista Luiza Lemos, 40 anos, sentiu, ao fazer a transição, que os personagens desenhados por ela não a representavam mais. Luiza passou, então, por um período de seca criativa, sem saber o quê e como desenhar. Até que, ao assistir a um programa de televisão, veio a ideia: por que não contar a própria história?
;Vi um dos apresentadores dizendo que quando era adolescente vivia triste dentro do armário, imediatamente me veio a imagem à mente de uma pessoa literalmente dentro de um armário, agachadinha e triste. Essa imagem daria um quadrinho, mas qual?;, lembra. A resposta para a pergunta também veio logo. ;Eu era a pessoa agachadinha no armário, que melhor história pra contar além da minha própria?;, conta.
A partir disso, em 2016, Luiza produziu a primeira história que daria origem ao projeto Transistorizada. Com uma narrativa curta, ela conta no quadrinho como literalmente saiu do armário com ajuda de um casal de amigos e como o processo de aceitação própria a ajudou. ;Eu estou radiante, é como se eu estivesse me vendo pela primeira vez;, diz a personagem da HQ ao se vestir com roupas femininas.
Depois dessa vieram mais histórias e Luiza começou a divulgar o trabalho periodicamente na página do projeto no Facebook (www.facebook.com/transistorizada/). ;Hoje, só o YouTube bate a eficiência do Facebook em divulgação de material independente, mas não é o caso do meu material. Publiquei uma tira recentemente, com uma crítica política, e ela chegou a mais de meio milhão de visualizações;, avalia.
Mudanças
Contar a própria história ajudou no processo de lidar com as mudanças e as dificuldades da transição, conta Luiza. ;As minhas tiras são um canal de expurgo para os meus dramas pessoais. Para mim, esses dramas acabam se tornando material de trabalho;, explica.
Para ela, o material pode ajudar também outras pessoas que passam pela mesma situação e que ainda não encontraram meios de expressar questões pessoais. ;Muitas pessoas trans não têm um meio de lidar com seus dramas diários relacionados ao preconceito. Então, as tiras ajudam não só a mim, mas também a outras pessoas que se identificam com as situações que eu vivi;, acredita.à
Duas perguntas / Luiza Lemos
É importante utilizar a arte para tratar de questões assim?
Sim, acho muito importante. As questões trans vêm sendo mais comentadas atualmente, mas sempre com um peso muito grande, tendo em vista que o Brasil é campeão mundial em assassinato de transgêneros e travestis. Nas minhas tiras, tento tratar assuntos de fundamental importância dentro da militância Trans e LGBTQAI com mais leveza, usando humor. Acho que isso não seria possível senão por uma forma de arte.
Desde que começou a publicar, a visão das pessoas mudou de alguma forma?
Eu penso sempre que o desapego ao resultado é algo de fundamental importância em qualquer luta social. O que eu faço agora é criar e divulgar uma mensagem, mas não sei se eu ainda colherei os frutos dessa luta, como eu disse, o Brasil é ainda o país que mais mata pessoas trans no mundo (dados do grupo Transgender Europe), e os haters, com quem eu lido a cada publicação, nunca me deixam esquecer disso . Mas acredito que estou contribuindo para que gerações futuras não vejam mais com tanta estranheza pessoas como eu, e que pessoas trans no futuro tenham vidas normais, sem precisar recorrer a coisas como prostituição ou trabalhos subalternos, mas que possam escolher como qualquer outra pessoa o caminho que queiram dar às suas vidas.