Quando há 60 anos, Elizeth Cardoso gravou o mítico Canção do amor demais, o LP que, historicamente, impulsionou o surgimento da bossa nova, os autores da 13 músicas de repertório não eram, ainda, artistas famosos. Tom Jobim, compositor e arranjador, tocava em boates do Rio de Janeiro para pagar o aluguel da casa onde morava. Poeta e diplomata, Vinicius de Moraes era segundo-secretário da embaixada brasileira em Paris.
[SAIBAMAIS]
O projeto inicial do jornalista Irineu Garcia era de um disco com poemas de Vinicius para a Festa, gravadora de sua propriedade, especializada em fazer o registro de poesia e prosa na voz dos autores. Mas a ideia evoluiu e acabou resultando no Canção do amor demais, que reuniu nove canções compostas em parceria por Tom e Vinicius, enquanto cada um contribuiu com mais duas, fazendo letra e música.
Um dos mais importantes biógrafos do país, o mineiro Ruy Castro, autor do livro clássico Chega de saudade, sobre a história da bossa nova, contou ao Correio que Elizeth Cardoso só gravou o disco porque Dolores Duran não aceitou participar. ;Dolores, amiga de Vinicius e a preferida de Tom, foi convidada inicialmente, mas sem acreditar no projeto, pediu um cachê alto, inviável para a produção, que era barata.;
Marco fundamental da música popular brasileira, o Canção do amor demais entrou para a história, fundamentalmente, pela participação de João Gilberto, à época, um tímido e promissor violonista, cuja ;batida diferente; e personalíssima era ouvida logo na faixa que abria o repertório ; nada menos que a lendária Chega de saudade; e em Outra vez. No ano seguinte, ele lançaria álbum com título homônimo, que trouxe novas possibilidades para a MPB.
Embora dona de uma voz belíssima, a interpretação de Elizeth para aquelas obras-primas de Tom e Vinicius não trazia nada de revolucionário, ou algo semelhante ao canto coloquial e sussurrado de João, que viria impactar e influenciar cantores de novas gerações. As harmonias e os arranjos de Tom e as letras de Vinicius são reverenciados até hoje. Aliás, Tom criaria arranjos também para o Chega de saudade, o lendário disco de João.
A Flauta de Odette
Francesa naturalizada brasileira, Odette Ernest Dias foi por 20 anos ; entre 1974 e 1994 ; professora do Departamento de Música da Universidade de Brasília (UnB). As reuniões que promovia em seu apartamento na 311 Sul, com a participação de vários músicos, como Waldir Azevedo, Bide da Flauta e Avena de Castro, deram origem ao Clube do Choro.
Em 1958, quando morava no Rio de Janeiro ; onde há 10 anos voltou a residir ;, era integrante do naipe de sopros da Orquestra Sinfônica Brasileira e pertencia ao cast das rádios Nacional e Mayrink Veiga, foi convidada por Tom Jobim para participar das gravações do Canção do amor demais. Aos 89 anos e dona de memória prodigiosa, recorda-se, com detalhes, daquele importante momento de sua trajetória artística.
;Ao chegar ao estúdio, percebi que conhecia praticamente todos os músicos envolvidos com aquele projeto, entre eles, o flautista Copinha, o violoncelista Iberê, o trombonista Ed Maciel e o pianista Romeu Forsati. Já havia acompanhado a Elizeth Cardoso antes, na Rádio Nacional;, lembra. ;Desconhecido para mim era o João Gilberto, que, à época, se mostrava uma pessoa simples, tranquila, mas de pouca conversa. Ao vê-lo tocar notei imediatamente que sua batida de violão era diferente de tudo o que havia ouvido antes;, acrescenta.
Odette soube que aquela maneira de tocar ele criou durante um retiro que fez na cidade mineira de Diamantina ; terra natal do presidente Juscelino Kubitschek. ;O certo é que a tal ;batida diferente; viria a se tornar a coisa mais importante do Canção do amor demais, disco que é tido como a gênese da bossa nova;, ressalta.
Ela conta que o LP foi gravado em dois dias, à noite, para baratear a produção. ;O ambiente no estúdio era o melhor possível. O Tom fazia regência e tocou piano em algumas músicas. O Vinicius ficou ali, observando tudo, ao lado dos técnicos. O Canção do amor demais, assim que foi lançado, não repercutiu muito. Tempos depois é que foi tomado como referência;, conclui.
Obras fundamentais da Bossa Nova
Chega de saudade ; João Gilberto (1959)
Marco e álbum fundamental para entender a bossa nova, Chega de saudade é estreia solo de João Gilberto. A cadência do violão (originalíssima) e voz pequena marcaram a música brasileira e influenciaram muito do que veio depois.
Bossa nova ; Carlos Lyra (1959)
Disco lançado antes de Lyra se tornar parceiro musical de Vinicius de Moraes, Bossa nova apresenta o cantor e compositor já com canções que se tornariam clássicas, como Maria ninguém e Só mesmo por amor.
Antonio Carlos Jobim ; Tom Jobim (1963)
O disco foi gravado nos EUA, com a bossa nova já fazendo sucesso mundo afora. O álbum trazia clássicos como Garota de Ipanema, Água de beber, Insensatez, Samba de uma nota só.
A nova bossa nova ; de Roberto Menescal e seu conjunto (1964)
Menescal foi um pioneiro do movimento, ensinou muitos instrumentistas e acompanhava diversos outros músicos. No álbum de estreia, trazia canções de outros compositores e parcerias suas com Ronaldo Bôscoli.
Canção do amor demais
; Chega de saudade
; Serenata do adeus
; As praias desertas
; Caminho de pedra
; Luciana
; Janelas abertas
; Eu não existo sem você
; Outra vez
; Medo de amar
; Estrada branca
; Vida bela
; Modinha
; Canção do amor demais