Em busca de equidade no mercado, mulheres de diferentes âmbitos da arte criam projetos com o objetivo de apoiar produções artísticas femininas. Por meio de selos, elas se unem, se apoiam e conseguem, juntas, ultrapassar as barreiras para lançar e valorizar narrativas feitas por mulheres. As iniciativas perpassam o audiovisual, a música e a literatura e têm crescido nos últimos anos.
A poeta e cantora brasiliense Tatiana Nascimento faz parte de um projeto desse tipo. Ao lado da poeta paulistana Bárbara Esmenia, fundou, em 2015, a Padê Editorial, uma editora de Brasília que publica livros artesanais de autoras negras, lésbicas e transexuais. ;A nossa intenção é publicar outras narrativas, de pessoas negras e LGBTs. Na seleção, a gente tem privilegiado livros, textos, teorias e poesias que escrevam a diáspora negra e as vivências LGBTs de uma forma diferente da expectativa do preconceito;, revela Tatiana.
Desde a fundação, a Padê Editorial lançou cinco livros e tem outros na fila, como o ebó di boca Y otros silêncios. Na última semana, a editora foi contemplada pelo Elas Fundo de Investimento Social (que desde 2000 investe recursos em iniciativas feitas por mulheres) para publicar 44 livros no projeto Escrevivências Artesanais, que oferecerá apoio financeiro e técnico para autoras, que podem se inscrever pelo Facebook oficial da Padê. ;O projeto tem preferência por autoras do Centro-Oeste, porque foi fundado aqui, e do Nordeste;, explica.
Também no mundo da literatura, neste ano, a Editora Record reativou o selo feminino Rosa dos Tempos. Criado em 1990, ele nasceu para dar voz às mulheres e acabou sendo encerrado em 2005. ;Há algum tempo, vínhamos percebendo o aumento pela procura de livros feministas. Obras com abordagens relacionadas a questões que são importantes para as mulheres, mas que não eram contempladas na bibliografia disponível, ou havia, mas não eram de fácil acesso. Chegamos à conclusão que seria muito melhor resgatar o selo Rosa dos Tempos e, com isso, fazer uma homenagem a uma de suas criadoras, a feminista Rose Marie Muraro;, revela Andreia Amaral, um das editoras.
O selo retorna com uma gestão sem hierarquias e em um formato de projeto colaborativo, ;em que a informação circula, as dúvidas são debatidas, as ideias, criticadas, tudo em comum acordo;, como define Andreia. A intenção é publicar obras que tratem de questões de interesse das mulheres, que valorizem a nova geração do feminismo e concedam lugar de fala. O relançamento ocorreu com a publicação de Feminismo em comum ; para falar do feminismo com todas, todx e todos, de Marcia Tiburi. O selo já lançou Mamãe, de Maya Angelou, e lançará em breve A terra das mulheres, de Charlotte Perkins Gilman. ;Enquanto não houver representatividade em todos os campos, será difícil conseguir a igualdade que sabemos ser fundamental para a coexistência respeitosa entre homens e mulheres;, analisa Andreia Amaral.
Contra as estáticas
Durante o evento Rio 2C, no Rio de Janeiro, foi lançado o projeto Elas, da Elo Company, idealizado por Barbara Sturm e Carole Moser, dois nomes de destaque do audiovisual brasileiro. O projeto se trata de uma rede formada por mulheres que farão consultoria na produção de longas com direção feminina. O objetivo é potencializar e fomentar as produções realizadas por mulheres.
;Ele foi criado em cima da pesquisa da Ancine, em que apenas 17% dos filmes lançados em 2016 eram dirigidos por mulheres. Apesar disso, nós, como distribuidoras, entendemos que, desde esse período, o público tem se interessado em histórias com narrativas femininas e que isso é uma tendência de consumo;, conta Barbara Sturm.
O lançamento do Elas ocorreu com o anúncio do apoio em nove longas. ;A Elo não vai passar a distribuir só filmes dirigidos por mulheres, e sim ter acesso direto a eles. Continuamos procurando projetos fortes, bem desenvolvidos e de talentos tanto na produção quanto na direção. Estamos abrindo também para receber novos projetos e para pessoas interessadas em disponibilizar seu tempo;, afirma a diretora de conteúdo da empresa.
Mundo da música
Mostrando que esse tipo de iniciativa é uma tendência em diversas áreas, existem outros projetos parecidos. No mundo da música, então, é onde eles mais aparecem. Atualmente, as cantoras e bandas formadas por mulheres, sejam elas cisgênero sejam transgênero, contam com iniciativas como a Sêla Musical, PWR Records, Efusiva Gravadora e Hérnia de Discos.
;Vivemos um bom momento! É extremamente cativante ver que outras iniciativas como a nossa vêm surgindo no Brasil e que podemos atualmente entender que boa parte da produção nacional é compreendida por projetos feitos por mulheres. É perceptível que esse movimento tende a se expandir.; A análise é da equipe da Efusiva Gravadora, que, para fortalecer o projeto, responde sempre em grupo.
O projeto surgiu em 2015 da necessidade de um espaço para a cena independente feminista brasileira. A gravadora é composta por mulheres do Rio de Janeiro e tem como objetivo promover, gravar, divulgar e distribuir material produzido por mulheres. ;A criação do selo foi uma maneira de a gente fortalecer conexões e apoiar o que muitos chamam de cena das minas;, completa.
Lançada em 2016, a Hérnia de Discos atua em diversos terrenos da música, produzindo discos e promovendo eventos, como uma residência artística no estúdio T-RECS, em SP,eo Pedalaço das Minas, que são eventos em que as mulheres podem trocar experiências, e pequenos shows em casas residenciais comandadas por mulheres. ;Inicialmente, surgiu de uma inquietação em desenvolvermos maneiras de ajudarmos outras musicistas e a divulgar nossos projetos musicais;, revela Desirée Marantes, umas das responsáveis atualmente ao lado de Cintia Ferreira (In Venus e Glitter na Navalha).
SERVIÇO
Show de financiamento
Tatiana Nascimento fará um evento hoje, às 19h44, no Sesc Garagem (713/913 Sul), para arrecadar verbas para a publicação de ebó di boca Y otros silêncios. Acompanhada do irmão Thiago Jorge Ruby e de Lucas Pimentel, a poeta unirá música e poesia. Ingressos a R$ 7 (meia, com carteirinha ou doação de ração felina ou canina) e R$ 14 (inteira). Não recomendado para menores de 14 anos.
Entrevista / Andreia Amaral, da Rosa dos Tempos
Como surgiu a ideia de reativar o selo Rosa dos tempos?
Há algum tempo vínhamos percebendo o aumento pela procura de livros feministas. Obras com abordagens relacionadas a questões que são importantes para as mulheres, mas que não eram contempladas na bibliografia disponível, ou havia mas não eram de tão fácil acesso. Muitos assuntos, inclusive, considerados tabus, como o aborto, a maternidade, temas ligados a transtornos alimentares, entre tantos outros. Os selos dos grupos, individualmente, já vinham buscando esse tipo de livro para os seus catálogos. Foi então que pensamos em criar um selo que reunisse esses livros, porque assim poderiam ser trabalhados com mais foco e direcionamento. Mas por que criar um novo selo se já havia no grupo uma marca feminista reconhecida, forte, mas que estava adormecida? Chegamos à conclusão que seria muito melhor resgatar o selo Rosa dos Tempos e, com isso, fazer uma homenagem a uma de suas criadoras, a feminista Rose Marie Muraro, e tudo isso num momento importante, em que o Grupo Editorial Record comemora 75 anos de existência. A ideia é manter no selo uma gestão sem hierarquias: são várias editoras que decidem em consenso o que vai ser contratado e quais as estratégias para publicação e divulgação dos livros. Uma espécie de selo colaborativo, onde a informação circula, as dúvidas são debatidas, as ideias, criticadas, tudo em comum acordo.
Qual será a área de atuação do selo? Qual é o foco nesse retorno?
O selo vai publicar livros que tratem de questões de interesse da mulher. Queremos equilibrar as publicações entre títulos teóricos, ficção, memória, tudo o que puder contribuir para dar visibilidade a assuntos que não tinham, até pouco tempo, muito espaço. E, principalmente, conceder às mulheres esse lugar de fala. Estamos primeiro nos concentrando em títulos mais clássicos, livros que poderão abrir caminho para outros projetos mais autorais e originais adiante. Há pautas importantes, como o feminismo interseccional, que é de extrema relevância, mas que vem ganhando mais força no Brasil agora, nesta nova onda feminista, e que precisa estar no centro das discussões. Ficamos impressionadas com a demanda reprimida por parte das autoras, principalmente. A resposta das mulheres até agora foi muito boa, estamos recebendo mais originais do que prevíamos e com abordagens diversas. Além de termos conseguido emplacar o primeiro livro do selo, Feminismo em comum, escrito pela Marcia Tiburi, nas listas de mais vendidos, de janeiro para cá.
Diversas iniciativas similares estão surgindo. Como vocês enxergam esse novo cenário em que as mulheres estão colocando a mão na massa para se ajudarem e garantirem espaço no mercado artístico?
Aos poucos, conforme vimos lendo e pesquisando para o catálogo da Rosa, nos surpreendemos com a forma com que as mulheres foram simplesmente apagadas da história. Parece meio óbvio, mas a verdade é que a gente não se dá conta. Em muitas situações, há mulheres que tiveram um protagonismo invejável, mas simplesmente tiveram seus nomes suprimidos, em alguns casos com homens ocupando seus lugares, roubando suas ideias ou ficando omissos, sem o menor interesse em reconhecer suas conquistas ou lhes dar o devido crédito. Esse tipo de coisa, a partir de agora, vai ser muito mais difícil de acontecer. Finalmente a ficha caiu, entendemos que não é nos colocando umas contra às outras que vamos conseguir mudar nosso papel na História. Ao contrário, será abrindo caminho umas para as outras, buscando respaldo na literatura, ocupando os espaços disponíveis e abrindo outros, partindo para uma postura menos passiva. Enquanto não houver representatividade em todos os campos, será difícil conseguir a igualdade que sabemos ser fundamental para a coexistência respeitosa entre homens e mulheres.
Especificamente para a literatura, quais são os desafios hoje para as mulheres?
A representatividade. Conseguir ocupar seu espaço de forma natural, sem precisar justificar por que meios chegou aonde chegou. Vencer o preconceito que há em relação a um tipo de literatura que é classificada como ;feita para mulheres;, mas no sentido pejorativo, como se fosse um tipo de literatura menor, com menos importante.
Entrevista / Desirée Marantes, da Hérnia de Discos
Como surgiu o projeto Hérnia de discos? E qual foi a principal motivação?
Inicialmente, o Hérnia de Discos surgiu como um inquietação minha e da Liege Milk, baterista da Medialunas e da Hangovers, em desenvolvermos maneiras de ajudarmos outras musicistas e a divulgar nossos próprios projetos musicais. Logo a Marianne Crestani (Bloody Mary Una Chica Band e Mercenárias) e a Brunella Martina (Winteryard e Cavalice) se juntaram e começamos a produzir e lançar bandas e projetos. Depois de um tempo todas estavam sem tempo para continuar trabalhando no Hérnia e decidimos que elas seriam colaboradoras em projetos pontuais e eu convidei a Cintia Ferreira (In Venus e Glitter na Navalha) para me ajudar a tocar o selo.
Como vocês definem o projeto e quais são as principais atuações do projeto?
A gente acredita que não definir exatamente o que fazemos é a melhor maneira de trabalharmos. Por isso já começamos decidindo que não trabalhamos como uma identidade relacionada a um estilo musical (que é o que a grande maioria dos selos faz, ex. selo X só lança banda punk, selo Y só trabalha com projetos de hardcore), que gostaríamos de trabalhar com os mais diferentes tipos de projetos e sonoridades. A gente desenvolveu algumas iniciativas como uma residência artística, em que trazemos uma artista que gostamos para gravar em nosso estúdio T-RECS em São Paulo e depois lançar a obra pelo selo, o Pedalaço das Minas, que são eventos onde mulheres se reúnem para trocar experiências e informações sobre a utilização de pedais de efeito em diversos instrumentos. Estamos com uma nova iniciativa em que produzimos pequenos shows em casas residenciais comandadas por mulheres, que visa abrir espaços para que a gente não precise mais se submeter a ter que se apresentar em casas de shows que têm entre os donos e/ou sócios homens com histórico de abuso, atitudes machistas e preconceituosas.
O projeto é voltado para a área musical, mas atua também em outros âmbitos artísticos?
Nós começamos com a música, pois é o território no qual nos sentimos confortáveis para ajudar mas com a rede incrível de colaboradoras que estamos tendo contato temos planos de atuar também em outras frentes.
Desde o lançamento, em 2016, qual balanço faz da atuação do projeto?
Estamos muito felizes com as iniciativas que desenvolvemos e, tanto eu quanto a Cintia (Ferreira), temos mentes muito inquietas, então existe uma compreensão de que tudo que fizemos até agora ainda é pouco perto das possibilidades que enxergamos para o futuro. A pouco tempo produzimos nosso primeiro evento fora do país com dois projetos do selo (Harmônicos do Universo e Sabine Holler tocaram na Pete;s Candy Store, que fica em Williamsburg, no Brooklyn e é considerado pela Time Out como um dos 10 melhores lugares para se assistir shows em Nova York). Temos muita confiança nas artistas que têm trabalhado conosco e estamos muito felizes de poder apoiar projetos incríveis como a Saskia, jovem talento residente em Porto Alegre, a banda Bertha Lutz, de Belo Horizonte (que existe a mais de 10 anos) entre tantos outros projetos. Acreditamos também em trabalhar na educação das meninas desde cedo, então também somos voluntárias do Girls Rock Camp Brasil e eu sou uma das coordenadoras do Girls Rock Camp Porto Alegre, acampamento diurno para meninas de 7 a 17 anos onde, em uma semana, elas aprendem a tocar um instrumento, montam uma banda, criam uma composição autoral e fazem um show.
Diversas iniciativas similares estão surgindo. Como vocês enxergam esse novo cenário em que as mulheres estão colocando a mão na massa para se ajudarem e garantirem espaço no mercado artístico?
Quanto mais iniciativas surgirem melhor! É lindo de ver mulheres se organizando para trabalharem e criarem projetos juntas, ainda falta muita coisa melhorar e muita coisa para desenvolver, e queremos que cada vez mais todas essas iniciativas colaborem mais e mais para fortalecermos umas as outras.
Entrevista / Equipe Efusiva
Como surgiu a Efusiva gravadora? Qual foi a principal motivação?
A Efusiva surgiu da necessidade da gente se organizar a construir um selo dedicado a cena independente feminista brasileira. Nós, que sempre estivemos inseridas no underground do Rio de Janeiro, e principalmente nas regiões mais suburbanas do estado, como alguns municípios da Baixada Fluminense, sempre percebemos uma dominação hetero-patriarcal em que as mulheres eram muitas vezes desvalorizadas e até mesmo oprimidas em suas produções artísticas. Esse quadro nos levou muitas vezes a deixar de frequentar alguns espaços e recuar com projetos pessoais, até nos darmos conta de que somos fortes o suficiente para realizarmos potentes transformações e nos desgarrar de contextos que talvez nunca tivessem verdadeiramente valorizado nossas bandas, nossas iniciativas, nossa arte em geral. Assim, a Efusiva nasceu em 2015 com o objetivo de promover, gravar, divulgar e distribuir material produzido por mulheres. A criação do selo sempre foi uma maneira da gente fortalecer conexões e apoiar o que muitos chamam de ;cena das minas; com mais propósito, rompendo alguns rótulos que sempre nos posicionaram fora dos palcos, dos festivais, das audições, das mídias e da história.
Que balanço fazem do projeto desde a criação?
Nosso maior balanço são as bandas que confiam no nosso trabalho e assinam com a Efusiva. Belicosa, Bochechas Margarinas, Cattilinárias, Charlotte Matou um Cara, Clara Ray, Chico de Barro, Drugged Doll, Errática, Estela Disse Sim, Floppy Flipper, In Venus, Kinderwhores, Melinna, Trash No Star e Tuíra são os projetos artísticos que atualmente nos fazem ser o que somos. Nosso principal combustível na missão que é produzir e divulgar essas bandas é a crença que temos em cada uma das mulheres que as compõem. Nós pensamos a satisfação de tê-las no nosso cast de forma sempre recíproca, uma vez que nos mantemos firmes nos objetivos que fizeram a gente criar a Efusiva.
Como é a atuação da Efusiva nos trabalhos?
Divulgar, promover, gravar e distribuir são os pilares da Efusiva. Contudo, devemos sempre nos adequar às necessidades de cada projeto, porque cada banda ou artista tem objetivos e necessidades diferentes. Dessa forma, o nosso trabalho tem que levar as especificidades características de cada um em consideração para oferecer nosso melhor de forma personalizada, sem interferir, é claro, na autonomia de cada projeto.
Diversas iniciativas similares estão surgindo. Como vocês enxergam esse novo cenário em que as mulheres estão colocando a mão na massa para se ajudarem e garantirem espaço no mercado artístico?
Vivemos um bom momento! É extremamente cativante ver que outras iniciativas como a nossa vem surgindo no Brasil e que podemos atualmente entender que boa parte da produção nacional é compreendida por projetos feitos por mulheres. E, assim como não há dúvidas que ainda existe muita coisa a ser feita, é perceptível que esse movimento tende a se expandir. Acreditamos que existe uma tomada de consciência que não deixa brecha para desandar esses esforços. Uma vez que um grupo de mulheres se dá conta do poder que elas podem ter em ajudar umas as outras, ocupar espaços e crescer em conjunto, fazendo elas por elas mesmas o necessário para garantir esses lugares de representação, a força passa a ser exponencial e imbatível.
Quantos trabalhos vocês já promoveram ao longo desses três anos?
Podemos computar nossos trabalhos para além dos discos e singles que tivemos o prazer em lançar e distribuir. Nesses três anos promovemos diversos eventos e pequenos festivais com apresentações de bandas do selo e outras bandas convidadas, apoiando de certa forma também uma espécie de intercâmbio entre as realidades do underground de outros estados, como São Paulo, Rio Grande do Norte e Minas Gerais;
Organizamos diversas oficinas, rodas de conversa e workshops, tais como oficinas de fanzine, defesa pessoal, stencil, colagens, workshop de bateria, o pedalaço das minas, que é uma tarde de experimentações com pedais de efeito para guitarras, rodas de conversa com temáticas sobre a falta de representatividade de mulheres negras no cenário underground brasileiro, e sobre o movimento riot grrrl atual.