Aspectos de transformações radicais nas coloridas e movimentadas ruas dos arredores da estação de metrô Château d;Eau são pontilhados a cada instante da trama do longa-metragem Château-Paris, em cartaz na capital. Num império urbano em que prepondera um tipo de comércio informal, que muito faz lembrar vielas do dia a dia brasileiro, o filme se detém na movimentação de uma galeria de personagens de origem africana, além de muitos imigrantes. ;Não proponho um cinema reivindicativo. Realmente, investi em retratar uma realidade que conheço. Se trata das minhas raízes, e faço questão de explorá-las. Não sou de levantar a bandeira dos filmes destinados a público negro. Inicialmente, antes de mais nada, meu princípio é o da busca de uma história com a qual as pessoas possam se identificar;, defende o cineasta Cédric Ido, em entrevista ao Correio.
Aspectos diferenciados da Paris dos cartões-postais se alastram no filme Château-Paris, codirigido ainda por Modi Barry. Estrelado por Jacky Ido (irmão do diretor, e lembrado por filmes como Bastardos inglórios, de Tarantino), o longa mostra, em forma de crônica despojada, os pequenos afazeres e desejos do jovial Charles, que tem como trabalho o aliciamento de clientes para salão de beleza das redondezas. ;Desde sempre, frequentei muitos salões e barbearias, a fim de conseguir cortes de cabelo apropriados para situações especiais. Há certa representação histórica, no filme, e acho que também ressaltamos a condição social de um grupo de pessoas, ao longo do filme;, observa Cédric Ido.
A exemplo do curta Das raízes às pontas e do filme venezuelano Pelo malo, boa parte dos anseios de personagens toca questões relacionadas a aparências. ;Pelo cabelo, as mulheres percebem uma forma de se revelarem mais fortes. De certo modo, elas se impõem ; assumem o próprio cabelo. Assumem um cabelo, livre de perucas e afins. Cabelo grande e dreadlocks têm lugar na sociedade. A reaproximação com laços étnicos traz a reapropriação de identidade;, aponta o cineasta. Cédric Ido conta que começou a prever imagens e esboçar situações de narrativa, ainda como criador de quadrinhos, de modo autodidata. Muitos storyboards que definiram cenas de Château-Paris tiveram o respaldo do ilustrador Ido.
Entre rivalidades de grupos de malandros pelas ruas de Paris e o comércio que lança moda e tendências de empoderamento, o diretor conta que o longa foi pautado pelo senso de organização, comum a muitos dos ambulantes e afins com relações intensas na lida com rendez-vous (ponto de encontro), a cada esquina. ;Para a realização, contratamos alguns supostos vigaristas, que desenvolvem, no cotidiano, jornadas ao estilo marreteiro. Mas, é tudo muito diferente daquilo que o senso comum faz crer. Não há contravenção, a todo momento, nas ruas. Há, por exemplo, um acordo com a prefeitura, e há áreas, livres das drogas, nas quais a polícia nem opera. Nesses bairros, há, no máximo, redes de prostituição chinesa; mas salões e arredores dos rendez-vous são completamente seguros;, avalia Cédric Ido.
Frustração e perspectivas
Porta de acesso para os diretores estreantes Ido e Modi Barry, Château-Paris, nas bilheterias francesas, trouxe uma via de mão dupla, com reconhecimento, mas dose de frustração. ;A repercussão foi positiva, mas a verdade é que se tratou de um lançamento modesto. O nosso distribuidor local, pouco antes do lançamento, foi à bancarrota. Foi algo frustrante, pois houve um burburinho muito bacana e nossas expectativas já estavam bem delineadas. Vimos um ótimo potencial ser prejudicado;, lamenta o diretor.
Participante do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul ; Brasil, África e Caribe, ano passado, no Rio de Janeiro, Cédric Ido ficou empolgado com a afinidade e o potencial de público brasileiro. ;Notei que vocês têm real interesse em buscar os traços de culturas formadoras, como é o caso da africana. Reconheci, no Brasil, um país multicultural, e me deu prazer notar que era uma realidade que se aproximava à dos meus personagens, como se fosse nosso filme projetado, na vida real e em larguíssima escala ; como se o povo representasse muitos de meus personagens;, comenta o diretor.
Cinema de matizes
Diretor engajado e ator de filmes, o africano Cédric Ido conta que, em Château-Paris, pretendeu fazer jus ao histórico de vida que ele carrega. ;Queríamos personagens que não fossem brancos, sem a necessidade de justificativa que comumente é empregada para gerar realizações de cinema com predominância de personagens negros. O público estava aberto, na França, para receber nossos personagens. Pantera Negra, com estrondoso sucesso, é a prova de que todo o público pode se identificar, sem fazer questionamentos quanto à cor da pele;, observa.
Se o codiretor Modi Barry tem passagens interessantes como a da participação na equipe do longa Amém (2002), Cédric Ido não fica atrás: ainda criança, viu a República do Alto Volta ser transformada no país africano Burkina Faso, sob ordens do militar Thomas Sankara, que revolucionou a estrutura daquele país. ;Por um traço de personalidade, busco minhas origens e abordo um cinema impregnado de raízes. Além disso, sou eclético. A minha chave de entrada para o cinema, por exemplo, vem do consumo de obras orientais;, enfatiza.