Nahima Maciel
postado em 01/04/2018 06:40
Oswald de Andrade editou apenas 300 exemplares de seu Primeiro caderno do alumno de poesia. Com 24 poemas nos quais visita temas que apareceriam ao longo de toda a produção do poeta, o livrinho foi impresso em 1927 em uma tipografia no centro de São Paulo. Trazia ilustrações do próprio Oswald e de Tarsila do Amaral, com quem era casado e que se ocupou da capa do livro. Não é, como aparenta no título, a obra de um iniciante. O modernista já havia publicado o manifesto Pau-Brasil, três anos antes. Mas esse caderninho charmoso e muito satírico ficou um tanto esquecido. Ganhou uma reedição nos anos 1940 e outra, duas de décadas depois, em meio a outros títulos em volumes de poesia completa. E foi só, até a Companhia das Letras decidir trazer de volta às prateleiras a edição fac-símile da edição original.
Com formato de 26,5X21,5cm, tipografia em preto e vermelho, como Oswald planejou em 1927, e um volume anexo com textos assinados por Augusto de Campos e Manuel da Costa Pinto, o Primeiro caderno do alumno de poesia é uma joia. ;O mais belo livro de poesia do nosso modernismo;, segundo Augusto. ;O mais belo enquanto conjunto coerente de poemas, enquanto risco e ousadia de linguagem, enquanto concepção plástica e material do livro.;
O poeta concretista conheceu o livro em 1949, durante uma visita a Oswald, em companhia de Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Recebeu o presente que o modernista tirou de uma pilha de livros guardada em um canto do apartamento. Havia ali alguns exemplares que ofertava a um ou outro amigo. Na época, o mentor do modernismo estava esquecido. Foi apenas nos anos 1960, graças aos poetas concretos, que seus romances e poesias retomariam lugar de destaque na literatura brasileira. ;Toda a obra dele ficou mais ou menos sem edição praticamente até os anos 1960, quando foi objeto de uma redescoberta a partir da atitude dos poetas concretos de revalorizarem a obra dele. Também foi muito importante a montagem de O rei da vela pelo Zé Celso, em 1967. Isso significou, de fato, uma releitura em perspectiva da obra do Oswald como um todo, mas principalmente pelo prisma da antropofagia;, explica Manuel da Costa Pinto.
Percepção
Oswald de Andrade foi um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922 e um dos mentores da ideia de criar uma arte inteiramente brasileira. Seu Manifesto antropófago deu origem ao movimento antropofágico e trazia a proposta de se apropriar das referências culturais europeias, degluti-las e devolver ao cenário artístico brasileiro uma produção com todas as características nacionais que poderiam resultar de uma digestão benfeita.
Tarsila do Amaral foi a melhor representante dessa ideia nas artes plásticas e Oswald e Mario de Andrade, as melhores expressões do movimento na literatura. É com isso em mente que se deve abordar esse Primeiro caderno. ;O Pau-Brasil e o Primeiro caderno estão um pouco nesse contexto de criar uma poesia que tem um olhar irônico para a história oficial brasileira, um olhar singular para questões como urbanização, industrialização e, ao mesmo tempo, para o caráter tímido da própria modernidade num país periférico como o Brasil.
Isso tudo faz com que ele reivindique um olhar com olhos livres para a realidade, para se despir um pouco da tradição, seja lusitana, seja de um certo beletrismo que havia na literatura brasileira, e de uma perspectiva muito calcada nas raízes europeias;, diz Costa Pinto.
Oswald buscava um olhar novo sobre a realidade brasileira e uma expressão poética nova sobre essa realidade. E o Primeiro caderno tem alguns bons momentos dessa busca. São versos como os de As quatro gares, nas quais fala de infância, adolescência, maturidade e velhice com uma ironia que é retomada ao transformar em poesia a própria história do Brasil nos excelentes História pátria e Canção da esperança. Dedicado a Manuel Bandeira, Historia patria fala de caravelas, ou ;barquinhas;, na concepção do poeta, que chegam ao litoral brasileiro carregadas de aventureiros, governadores, espanhóis, cruzes de Cristo, donatários e bacharéis, assim com o de degradados e filibusteiros, prontos para encontrar índios e pau de tinta (ou pau-Brasil).
A perspectiva infantil e ingênua a respeito da realidade brasileira é recorrente nos poemas do Primeiro caderno e é com essa estratégia de buscar o olhar pueril que Oswald consegue falar, com muito lirismo e ironia, da violência e da desigualdade entranhadas na sociedade brasileira. ;E essa troça reapropriada pelo adulto serve como instrumento de exposição desses impulsos mais violentos;, explica Costa Pinto. ;É um livro consciente, mas não é programado, calculado, ele libera certos impulsos instintivos, destrutivos, de deboche e de exposição das nossas violências cotidianas e faz isso aflorar utilizando uma perspectiva infantil para mostrar como, reapropriados na idade adulta, esses instintos se mostram como a raiz das forças que atravessam uma sociedade violenta, escravista, segregadora, elitista.;
Declaração de amor
Os desenhos que acompanham o livro ilustram o tom dos versos, mas também funcionam como uma declaração de amor a Tarsila do Amaral. Alguns são claramente inspirados na obra da artista, que também é o alvo da dedicatória desse fac-símile: um perfil de cidade discretamente carimbado com a frase ;Viva Tarsila!”, uma bananeira cujo traço pode estar em algum quadro da artista, uma fazendinha, um canhão, uma montanha. ;A Tarsila, de certa maneira, encontra uma representação da paisagem brasileira que é muito semelhante à representação poética da paisagem brasileira de Oswald. Esses desenhos são como uma tentativa de estabelecer uma aliança entre eles e o olhar que partilham em relação ao Brasil;, garante Manuel da Costa Pinto.
Primeiro caderno do alumno de poesia Oswald de Andrade
De Oswald de Andrade. Companhia das letras, 64 páginas. R$ 79,90