Dada a constância de uma câmera circulando entre coxia e camarins da peça As três velhas, a intimidade estava estabelecida, e os codiretores Fábio Furtado e Pedro Jezler, à frente do documentário Górgona, não tinham dúvidas do acesso à matéria-prima do filme em curso: a autenticidade da atriz Maria Alice Vergueiro. ;Havia a delicada questão do contrato de confiança não estabelecido. Nisso, não há limites bem delineados ; o avanço na intimidade pode cruzar fronteiras, passando ao incômodo. O desafio é também não frear muito na investida, ficando aquém do resultado esperado. Na convivência, sabemos que Maria Alice é atriz e sentia a presença da câmera, correspondendo. Mas, por estarmos integrados ao ambiente, às vezes, até ela se esquecia da gente;, conta o diretor Fábio Furtado.
Em caráter totalmente independente, Górgona chegou aos cinemas da capital um ano e meio depois de pronto. Além da direção de fotografia do longa, Fábio acumula experiências como a assistência de direção de espetáculos da Companhia Pândega (na qual Maria Alice atua) e a criação de dramaturgia para peças. Sem entrevista ou material de arquivo, o filme é estruturado em questões candentes para a atriz, criada entre peças de Augusto Boal, do Teatro Oficina e de Bertolt Brecht. ;A qualidade maior da Maria Alice é a da irreverência, mesmo ao falar de temas complexos e pesados. Faz isso com graça e humor ; num clima de ambivalência, numa ;graça/séria;;, observa.
A remoção de montanhas, ao encapar projetos de teatro, é das abordagens perceptíveis, quando o centro das atenções é Maria Alice. ;O motor sempre é ela. É um tipo de atriz que gosta daquele tempo do teatro de grupo, da facção experimental, que persiste, sem patrocínio;, comenta Fábio Furtado. Nada, em Górgona, ficou de fora da montagem final, por ser polêmico ou incômodo. A atriz, num rompante, aparece, criticando, com leveza, opções de atrizes como Fernanda Montenegro e Cleyde Yáconis, e reclama do colega de jornada Zé Celso Martinez Corrêa. ;Eles têm uma relação muito longeva. Brigam, mas se amam. A mágoa acaba passando;, reforça o diretor.
Dona de um currículo recheado de ousadia, Maria Alice Vergueiro motiva eterna inquietação, ao entrar em cena. Entre as traquinagens ; capazes de influenciar a (concepção da) montagem do documentário Górgona ; está a época em que ela encenou a própria morte. A elaboração teatral culminava com o público interagindo com o velório da atriz, desdobrado a cada apresentação. Beijos de despedida, entrega de flores ; que encerravam uma das peças encenadas ; transformavam o espírito da atriz, modificada, ao longo das filmagens de Górgona: de cadeira de rodas, e com a locomoção dificultada, ainda assim, ela se mantinha ferrenha na meta de divertir e impressionar.
Hoje, aos 83 anos, a atriz segue na árdua convivência com o mal de Parkinson. ;Tempo para a Maria é urgente. Notamos que cinco anos (que transcorrem na fita) passam de modo muito diferente. Desde o começo, víamos que ela sofria as consequências da idade e da doença;, reforça Furtado. Algumas apresentações de espetáculo foram canceladas, diante de seguidas internações da atriz que, atualmente, mesmo longe dos palcos, não se considera aposentada. ;Por enquanto, ela está em casa, bem. Depois da encenação da morte, pensamos até num projeto que brinque com a ressurreição da Maria Alice;, adianta Furtado.
Tapas da pantera
Górgona projeta no título, extraído da mitologia grega, um traço marcado da atriz, na opinião expressa dos diretores. ;É extraordinário como, ao modo da medusa, Maria Alice ri de coisas preocupantes ao seu próprio redor. Medusa se comprazia com o espanto das presas, diante de aspectos grotescos dela;, pontua Furtado. Sem nunca recorrer a relações verticais (calcadas na autoridade), a atriz segue percurso criativo sempre surpreendente, na opinião do colega de palco. ;Mesmo sabendo de toda a carga de sabedoria e experiência, ela acha uma forma de levar todos em conta. ;Me seduza com sua ideia; é o jeito de ela facilitar o contato, abrindo diálogo com todos;, elogia o amigo.
O longa foi realizado antes mesmo da montagem de Why the horse?, peça que teve a morte como autorreferência para a atriz celebrada, mais recentemente, pelo sucesso na internet (com o famoso esquete Tapa na pantera) e com o premiado curta Rosinha. As três velhas (o espetáculo que está em primeiro plano, no documentário), de certa forma, deflagrou o processo de um ;teatro documental;, que, em vários pontos, realimentou Górgona e mesmo a peça Why the horse?. Insegura, com a morte do irmão, Maria Alice assimilou nuances, à época, para o papel na montagem que, inicialmente, previa fundir textos de Fernando Arrabal e de Beckett. ;Ela ficou impressionada com o medo e a perplexidade do irmão ; daí, termos ido para outro lado, mais realista;, comenta o cineasta.