Rio de Janeiro ; Participar de um projeto do diretor José Padilha, nome por trás de Tropa de Elite 1 e 2, Robocop e Ônibus 174, era um desejo antigo do ator Selton Mello. O mineiro revelou que essa foi uma das maiores motivações para que ele integrasse o elenco da nova série do produtor para a Netflix: a produção O mecanismo, que estreia em 23 de março na plataforma de streaming. ;A gente flertou no Tropa de Elite 2. Ele veio com essa ideia (da série O mecanismo), com esse personagem fascinante e essa história relevante;, revelou Selton em entrevista coletiva realizada na última quinta-feira no Copacabana Palace.
[SAIBAMAIS]Selton Mello é uma das grandes estrelas da série, que tem como temática a operação Lava-Jato. O nome do ator é o primeiro a aparecer nos créditos do seriado, tanto pela relevância artística como ator, como pelo personagem, que dá início a história e é o narrador do primeiro episódio. Selton dá vida ao delegado Marco Ruffo da Polícia Federal ; que, na série, ganha o nome de Polícia Federativa nos uniformes e nos cenários do local. A história começa pelo personagem do mineiro, inspirado no delegado da PF Gerson Machado, que foi o responsável pela prisão de Alberto Youssef em 2003 no esquema de corrupção do Caso Banestado, banco estatal do Paraná, que, 10 anos depois, deu origem à descoberta do envolvimento do doleiro nos esquemas de corrupção investigados pela operação Lava-Jato.
Essa é a terceira vez que o ator interpreta um personagem inspirado em uma pessoa real. Ele já fez isso antes nos filmes Meu nome não é Johnny (2008) e Jean Charles (2009). Mas, dessa vez, decidiu construir sua própria versão de Gerson Machado para interpretar Marco Ruffo, de O mecanismo, o delegado obcecado por fazer justiça contra o doleiro Roberto Ibrahim, vivido por Enrique Diaz. Em uma mesa redonda para jornalistas em que o Correio participou, Selton Mello falou sobre a experiência na série, que ele garante ter mudado a maneira de como encara a política, e adiantou como está o processo do primeiro filme nos Estados Unidos, o longa-metragem Cathedral city, do qual será o diretor.
Entrevista / Selton Mello
Você preferiu não falar com o delegado Gerson Machado. Por quê?
Ele não mora aqui (no Rio de Janeiro), teria que fazer uma movimentação para ir lá e eu achei, nós achamos, aliás, que era mais rico a gente fazer uma criação livre. Eu quis estar livre para criar o personagem da maneira que imaginava com a Elena (Soarez, roteirista de O mecanismo). O material que vinha também era bem rico. Acho que é isso, era a liberdade de criar o negócio descolada da realidade.
O fato de ser uma série sobre a operação Lava-Jato trouxe um receio no início ou foi um projeto do qual você gostaria de estar envolvido?
Sim, acho que primeiro bate um ;meu Deus, será?;. Até porque, no meu caso, eu nunca fui uma figura muito ligada em política. É a minha formação, o meu limite, eu sou assim. Eu lembro do meu pai pegando o jornal e ele botava de lado o caderno de política. Ou seja, eu vim daí. E aí eu achei, que além de um grande personagem, que é; além de trabalhar com o Padilha, que era uma novidade, um cara que me interessava muito trabalhar; voltar a trabalhar com o Enrique (Diaz, com quem contracenou em O auto da compadecida), que é muito estimulante; além disso, achei que era uma oportunidade de um crescimento pessoal e de aprender coisas que eu não sabia. Então, foi interessante dar uma mergulhadinha em coisas que eu fazia como o meu pai. E a partir dessa série me fez pensar: ;Deixa eu tentar entender essa coisa sobre a qual eu nunca me debrucei;. E continuo sem entender, eu acho bem complexo tudo isso. Mas isso me fez um bem enorme.
Mudou para você a visão que tinha da operação Lava-Jato?
Eu acho que a Lava-Jato, olhando assim de fora e acompanhando, parece que fez um papel importante de, pelo menos, desvendar e de mostrar toda uma sujeira que estava embaixo do tapete. E que não começou ontem, nem nesse governo, nem no anterior. É um troço entranhado na cultura do país. Eu acho que levantou e mostrou, mas, muitas vezes, eu também olhava e pensava ;hum, mas isso está bom? Mas desse jeito?;. Eu me pegava muitas vezes com dúvida se estava fazendo o bem também. Às vezes, parecia ser seletivo, às vezes, parecia ;over; a superexposição dos juízes e dos promotores. Mas, ao mesmo tempo, parecia importante tudo isso que pode, sei lá, fazer com que o país cresça. Então, é por isso que eu digo, é complexo. Eu saio desse trabalho muito crescido. Estou crescendo fazendo esse trabalho. Eu aprendi muito, mas fiquei muitas dúvidas e continuo com elas. Acho que o legal é que a série também oferece dúvidas, não é uma série cheia de certezas e eu gosto disso.
A série está sendo lançada mais ou menos na mesma época em que foi anunciada a sua primeira direção numa produção nos Estados Unidos (o filme Cathedral city). Em que pé está o projeto?
Está no pé de escalação de elenco e lá tudo é diferente. Eu estou aprendendo também. É uma coisa nova, que eu também não sei quando será exatamente. Possivelmente, se tudo andar bem e eu tiver sorte, pode ser no fim do ano ou no início do ano que vem.
Dessa vez, você não estará no elenco?
Não sei. Pode ser que eu dê uma pinta lá. (risos). Ainda não sei. Estou escalando os personagens principais. Mas é (um trabalho) estimulante e outra coisa nova.
Você já viveu um policial federal e agora volta como um delegado aposentado. O que lhe estimulou a retornar para esse tipo de personagem? Você teve algum receio de se repetir?
Bom, não sei (risos). O que eu acho legal é que são personagens diferentes. Nessa pergunta me ocorreu outra coisa, que é o fato de já ter feito personagens que existiram, como Johnny (em Meu nome não é Johnny) e Jean Charles e que relações eu tive nesses trabalhos. Foram diferentes. O Jean Charles estava morto, eu soube dele por pessoas da família, pessoas que lidavam com ele. O João Estrela ia no set, batíamos altos papos, ele me contava um monte de coisa, eu convivia. Aqui (em O mecanismo), zero contato. Então, quer dizer, cada trabalho é um trabalho. Cada trabalho você acha uma forma de se aproximar e de se expressar.
Seu personagem ficou três meses dando soco na parede? Porque, na primeira parte da série, ele aparece com a mão quebrada...
Sobre isso, tenho um assunto interessante para contar, que eu não tinha contado ainda. Foi ótimo vir essa pergunta, porque eu fiquei imaginando ;será que essa mão vai render tratados da USP sobre a esquerda fraturada?; (risos). Agora, eu digo a vocês, sabe o que foi aquilo? Eu fechei o meu dedo num táxi a 20 dias da filmagem e quebrei o osso. Eu estava com tala e falei: ;Vou colocar no personagem esse troço;. E aí coloquei e ficou legal, porque você apresentar um cara imediatamente já fraturado, você fala assim: ;Poxa, esse é um bicho que já deu porrada;. E acabou sendo ótimo, mas eu quebrei a mão.
Por ser uma série que vai ser lançada em 190 países, você acha que é um tema que vai gerar impacto fora do Brasil?
É uma garrafa ao mar. O que é legal, dos dados que a gente acabou pescando, é que Narcos parece que foi um grande sucesso na Alemanha. E você fala assim: ;Que viagem;. Então, a gente nunca sabe. Se bobear, a gente vira um hit na Finlândia. (risos). É uma coisa muito maluca e bacana poder levar nosso trabalho para outros lugares.
Ficção versus realidade
Em 2016, o jornalista Vladimir Netto lançou o livro Lava Jato: O juiz Sergio Moro e dos bastidores da operação que abalou o Brasil e foi a leitura dessa obra que inspirou José Padilha a tratar o assunto em sua segunda série para a Netflix. ;Eu me interessei quando saiu o livro, porque ele dava uma percepção da história cronológica e explicava os personagens. Quando você lê uma notícia, você lê ;Sérgio Moro fez isso;, mas não tem quem é o Sérgio Moro, como ele pensa e o que ele faz. E, no livro, tinha isso. Então, eu pensei ;aqui, tem uma base de pesquisa séria feita por uma pessoa que entende e viu isso desde o começo;;, explica.
Com o projeto aprovado pela Netflix, José Padilha convidou a roteirista Elena Soarez (Treze dias longe do sol) para transformar os fatos em ficção. ;A gente partiu, certamente, do livro do Vladi e das pesquisas. Inclusive, sem o livro, eu teria levado três anos para entregar o roteiro (o processo inteiro de produção e gravação demorou cerca de oito meses). Ali, tem um trabalho monumental, mas (na série) a gente descola. Embora os personagens sejam identificáveis, eles não cabem (todos) na narrativa. Necessariamente, você vai tendo que fazer escolhas, combinar pessoas e desenhos, porque a realidade não vem desenhada. A gente está servindo à dramaturgia, as escolhas são todas guiadas para funcionar como entretenimento. Não é um documentário ou um noticiário jornalístico;, completa.
Dinâmica
Com uma primeira temporada de oito episódios, O mecanismo retrata o início da operação Lava-Jato. Na verdade, a série começa antes da ação em si, tratando do Caso Banestado, que envolveu o doleiro Alberto Youssef, na série, inspiração para o personagem Roberto Ibrahim (Enrique Diaz). ;Eu tenho uma visão do processo que a Lava-Jato revelou para o país que a corrupção não é um evento que acontece aqui e ali, mas é algo que estrutura a política, faz parte da lógica do processo eleitoral. A Lava-Jato começou quando o PT estava no governo, por isso que ela prendeu primeiro as pessoas do PT, mas foi chegando em outras. Como eu faria para não cair nesse problema? Eu começava no Banestado, que era o PSDB, então, 10 anos antes de 2013, foram emitidos para fora do Brasil US$ 30 bilhões no período de cinco anos durante o governo do PSDB. O Gerson, que inspirou o Ruffo, estava investigando isso e o Youssef era o operador. Então a gente começou lá já para tirar essa discussão ideológica, para ficar claro o que a gente acha: que só tem bandido;, acrescenta José Padilha.
Leia crítica sobre os três primeiros episódios
Leia crítica sobre os três primeiros episódios
A primeira sequência de episódios seguirá até a prisão dos empreiteiros, como adiantou o diretor, o que deixa a história aberta para futuras temporadas. Apesar de retratar os acontecimentos da operação, o diferencial é abordar a vida dos personagens. ;A gente conseguiu em que a investigação estivesse interligada com o drama dos personagens. É uma série que a gente consegue discutir questões polêmicas que estão acontecendo, que tem totalmente a intenção de não polarizar, mas de ir no caminho inverso, de discutir o mecanismo e não os lados, esse ciclo que todos estamos envolvidos, mas pelo ponto de vistas dos personagens;, afirma Daniel Rezende, um dos diretores.
Duas perguntas / José Padilha
A série deve criar um certo;Fla-Flu;, dividindo o público. Como você vê isso?
Não estou preocupado com isso. As pessoas sabem o que penso: eu não acredito na esquerda, não acredito na direita. Acho que é um problema estrutural que transcende ideologia. Isso é tão claro que eu não consigo entrar no Fla-Flu. Eu olho com interesse como as pessoas conseguem defender seu corrupto favorito e vão fazer com essa série.
O mecanismo está sendo lançado em um ano eleitoral. Você acha que ela pode influenciar alguma coisa?
Eu acho que a série não influenciará o processo eleitoral. Eu acho que ninguém sabe para onde vai o processo eleitoral e se a série influenciasse teria um número gigantesco de votos nulos e brancos, e as pessoas não votariam nos grandes partidos, sejam eles PSDB, PT ou MDB, porque elas pensariam que eles (os partidos) só funcionam porque estão ligados ao mecanismo.
Sobre os personagens
Verena Cardoni (Caroline Abras)
Uma das protagonistas ao lado de Marco Ruffo, a personagem é inspirada na delegada Érika Marena e, na série, fica responsável por chefiar a operação Lava-Jato. Ela é uma das melhores amigas de Ruffo e acabou se tornando a cabeça da ação na PF. ;É uma satisfação pessoal, eu como atriz estar nessa posição de protagonismo e a personagem estar num lugar de onde ela tem voz, é respeitada, gera empatia e identidade com outras mulheres. Uma mulher chefiando a polícia é algo que não vejo na minha caixinha de referências de filmes e repertório;, analisa Caroline Abras. Assim como o elenco como um todo, Caroline decidiu não procurar por Érika: ;A história corre muito em paralelo com a realidade. Eu tinha algumas opções e possibilidades, mas eu falei ;não quero ninguém, eu quero para minha satisfação como artista conversar com a minha mulher e saber o que ela quer falar desse lugar, o que eu quero defender, o que eu quero mostrar;. Então, eu quis vir comigo pequeninha, sem referência;.
Roberto Ibrahim (Enrique Diaz)
Outro personagem de destaque na história, ele tem como inspiração o doleiro Alberto Youssef. Apesar da confirmação de José Padilha, Enrique Diaz se recusa a fazer essa comparação. ;Eu não entro em conversa sobre isso. O Ibrahim é um personagem na narrativa. Se tem mais alguém na cabeça da Elena (Soarez) ou vários, eu não sei. Eu estou fazendo o Ibrahim com a base da dramaturgia, como qualquer história que não vem declaradamente de personagens reais ou vivo;, defende. Considerado vilão, Roberto Ibrahim também é um ponto de alívio cômico. ;O personagem tem humor, ele brinca com esse lugar meio vilanesco, embora eu não goste da ideia de vilão por ser muito redutor, mas acho que tem isso no personagem;, completa.
Kitano (Alessandra Colassanti)
Também inspirada em uma figura da realidade, a personagem é uma versão da cafetina Nelma Kodama. Em O mecanismo, ela é uma ex-cafetina e parceira de Roberto Ibrahim no esquema de corrupção e, assim como o personagem, ocupa um espaço de vilania e de humor. ;Ela tem essa função de alívio cômico, do escracho, desse feminino todo erotizado, tem esse lugar. Todos os personagens têm várias facetas e isso é muito legal de ver. Isso fica muito claro no personagem do Ibrahim, onde é possível ver o lado terno dele. E a Kitano também com uma paixão muito grande pelo Ibrahim, tem uma história de amor e as motivações dela;, define Alessandra Colassanti.