Nahima Maciel
postado em 20/02/2018 06:14
No primeiro conto de A cidade dorme, o narrador é um menino filho de pipoqueiro cuja família está, finalmente, mudando para a casa própria. Em Minha vida, o garoto de família humilde vai seguir os passos orquestrados pelo pai, que o inscreve em um curso de torneiro mecânico, profissão capaz de evitar o destino difícil de vender pipoca na praça.
O conto de Luiz Ruffato, que é filho de pipoqueiro e foi torneiro mecânico, aponta para vários brasis, assim como os outros 19 da coletânea, e tem muito da própria história do escritor, mas não é autobiográfico. Nada que Ruffato escreve tem cunho autobiográfico, embora todas as histórias tenham traços da vida do escritor. Mineiro de Cataguases, ele bebe no universo que o rodeia para fazer uma literatura que navega entre o realismo e o surreal com muita propriedade.
A cidade dorme reúne contos escritos entre 2001 e 2017. Muitos nasceram de provocações e convites e todos ganharam uma dedicatória. Nessa relação de oferecimentos estão amigos e pessoas que inspiram o autor, gente conhecida como Cristóvão Tezza e Frei Betto, e gente menos conhecida, como o poeta Donizete Galvão e o escritor Eloésio Paulo. A violência, o autoritarismo e uma realidade bem brasileira perpassam todos os contos de Ruffato, que ora é explícito ao falar da ditadura, ora aponta para um universo mais fantástico, como na narrativa sobre o irmão que encontra o morto em As vantagens da morte.
Há um certo Brasil triste nas histórias de Ruffato, um Brasil que ele observa e que traduz para a ficção, porque sim, ele acredita que a literatura possa incomodar e transformar, embora esse mesmo Brasil seja também terra de não leitores. Em 2013, quando fez o discurso que desagradou a muitos e lavou a alma de outros durante a Feira do Livro de Frankfurt, o escritor fez questão de apontar as desigualdades do país e suas consequências. Cinco anos depois, ele acredita que a situação piorou. ;Em 2013 tínhamos um país que estava claramente mostrando aquele discurso do ufanismo, era claramente falso, um ídolo de pé de barro, mas nós estávamos em algo parecido com democracia;, acredita. Em entrevista, o autor fala sobre o novo livro, mas também sobre as questões que afligem o país no século 21.
Há muito de suas próprias lembranças nos contos? Minha vida lembra muito alguns detalhes de sua vida...
Na verdade, em toda minha trajetória, não tenho uma história sequer que seja autobiográfica. Ao mesmo tempo, todas têm traços autobiográficos, seja por conta do universo, seja por conta dos afetos, do sentimento que está colocado ali, seja até mesmo por certa visão de mundo. Então, é evidente que isso transparece de maneiras mais óbvias em algumas vezes, como nesse conto, que poderia ser quase dito como um autobiográfico, mas não é. E tem outros em que isso não é evidente, como por exemplo Água parada, que não tem absolutamente nada meu, nem mesmo o ambiente normalmente que utilizo e, no entanto, é evidente que tem ali também traços da minha visão de mundo, traços da minha biografia. Então essa coisa está sempre muito mesclada pra mim. Muito misturada.
Água parada trata de jovens hippies presos pelos militares nos anos 1970, mas serve também como uma metáfora para os dias de hoje, trocando os militares pela intolerância e os jovens pelas minorias?
Exatamente. Penso que a literatura que se quer literatura tem que ter essa característica da transcendência. Ou seja, você reconhece um espaço e tempo específicos, mas ela não está ancorada naquele espaço e tempo específicos. Ela sempre é real e alegórica. E no caso de Água parada, ela está, evidentemente, se relacionando com um período específico da história brasileira, a ditadura e a repressão militar, mas, se você pensar hoje naquela situação com meninos de periferia presos na mesma circunstância, seria a mesma intolerância e violência policial. Tento sempre escrever de uma maneira realista e alegórica ao mesmo tempo. A situação, infelizmente, é no sentido de reviver na nossa memória esse momento que não acabou. Aquela situação de opressão e desmando é a mesma que existe no Brasil de hoje.
Promessa tem uma narradora. Pode contar como é se colocar nesse papel?
Pra mim, a história sempre pede para ser narrada e confesso que nem tinha percebido que era um narrador feminino. Depois, quando fui reler, percebi que era uma menina que estava narrando a história. Eu acho que o espaço da literatura, da criação, é o espaço da liberdade e as vozes assumem suas características específicas. Pra mim, foi natural, aquela história tinha que ser narrada daquela maneira. Foi uma necessidade da própria narrativa.
A violência doméstica é sempre algo presente na sua escrita. Por quê?
A questão da violência doméstica, sem que eu percebesse, perpassou todos os meus livros. Em Inferno provisório, uma tentativa de recriar o universo de uma classe mais baixa, é impressionante a quantidade de histórias nas quais a questão da violência contra a mulher e contra a criança está presente. Não foi pensado. Aparece porque a violência contra as mulheres e contra as crianças é uma característica da sociedade brasileira e, sem que eu percebesse, ela estava lá. Não falei ;vou escrever sobre esse tema;. Falei ;vou escrever sobre a sociedade brasileira; e, escrevendo sobre a sociedade brasileira, virão, se você for honesto, as questões de violência contra a mulher, contra a criança, a questão do racismo, da homofobia. Ou seja, nós temos isso muito presente na nossa sociedade.
Avançamos na questão do machismo?
A questão do machismo tem tido grandes avanços em relação à mulher tentando colocar essas questões de uma maneira madura e bastante coerente na sociedade. Evidentemente, temos ainda muito chão pela frente, porque, se essa questão tem vindo à baila, ela vem em passos muito determinados e em circunstâncias muito específicas. Acho que, para a gente alcançar um nível de discussão mais ampla, ainda vamos demorar muito. Mesmo nos Estados Unidos, uma sociedade ;mais avançada; do ponto de vista do papel da mulher e da situação em que ela se coloca na sociedade, você vê o que causa de problema essa discussão sobre os assédios sexuais no ambiente musical e no cinema, que é arte. Há um certo incômodo de discutir isso no Brasil. E sequer se começou a discutir a questão do assédio nos meios corporativos de maneira geral. Isso para não falar no meio literário.
Como é no meio literário?
A literatura escrita por mulheres até hoje não tem o mesmo espaço, no Brasil, que a literatura produzida por homens. Se você fizer um levantamento, o número de escritores homens e mulheres hoje se equivalem, mas o espaço dado para um e para o outro não é o mesmo. É um assunto a ser levado em consideração.
Da Feira do Livro de Frankfurt para cá, o que mudou?
Em 2013, tínhamos um país mostrando aquele discurso do ufanismo, que era claramente falso, um ídolo de pé de barro, mas nós estávamos em algo parecido com democracia. O Brasil nunca teve uma democracia efetiva, sempre tivemos democracia precária. Mas, naquele momento, tínhamos ainda algo parecido com isso. Logo em seguida temos a destituição da Dilma Rousseff, que fazia um péssimo governo, de uma incompetência atroz, mas era uma presidente eleita e não cometeu qualquer crime. Até hoje, não se comprovou qual crime ela cometeu para ter sido impedida. Daí pra frente, tivemos um presidente cujo papel foi única e exclusivamente de desmontar o Estado que havia. Voltamos, em algumas coisas como na legislação trabalhista, a lugares anteriores a Getúlio Vargas. E a violência piorou bastante. Temos algumas capitais nas quais o Estado nem está presente mais. O Rio de Janeiro é a demonstração disso. E com a presença do narcotráfico cada vez mais clara no Estado brasileiro. Era impensável, em 2013, que pudéssemos pensar que, em 2018, seria pior. Mas acho que estamos pior.
A cidade dorme
De Luiz Ruffato. Companhia das Letras, 128 páginas. R$ 39,90