Durante várias décadas, o poeta indiano Abhay K.,encarregado de negócios da Embaixada da Índia em Brasília, leu, intensivamente, antologias de poemas do seu país. Ele estava em busca de textos impregnados de beleza tão transcendental que mudasse a vida das pessoas. A pesquisa resultou em uma antologia de 100 poemas de 28 línguas oficiais da Índia. Lançada em versão virtual em inglês, a coletânea teve uma excelente recepção em vários países do mundo. E, agora, Ablay publica, em edição especial da revista da Universidade de São Paulo (USP), a mesma seleção de poemas. E, nesta entrevista, Abhay fala sobre o erotismo, o amor, o êxtase, a compaixão, as aflições, espiritualidade e o sentido de transcendência que impregnam a alma indiana.
Como foi reunir, traduzir e editar 100 poemas de 28 línguas oficiais da Índia?
Eu li durante muitos anos antologias em busca de poemas que pudessem mudar a vida das pessoas. E, para mim, também foram instantes de êxtase e de transformação entrar em contato com esses poemas. Li todas as antologias de poemas da Índia. Foi um trabalho longo e uma experiência rica selecionar esses versos.
Como conseguiu reunir os tradutores para compor antologia tão ampla?
Ao ler as antologias, eu comecei a identificar os futuros tradutores. Foi um processo natural. A tradução passou por duas etapas: da língua indiana para o inglês e do inglês para a língua portuguesa.
Qual a singularidade da poesia indiana?
Essas 28 línguas são de culturas muito diferentes. Têm raízes europeias ou tradicionais da Índia. Vai dos vedas até Tagore. Os temas são filosofia, erotismo, amor, questões políticas e sociais, problemas que atingem a Índia como um todo.
Qual a diferença entre a poesia indiana e a poesia ocidental? Seria a espiritualidade?
Sim, de fato, algumas vezes sinto falta de espiritualidade na poesia ocidental. Poemas como Waste land, de T.S. Eliot, não têm cor. Em geral, existem muitos poemas sobre perdas ou exílios. Isso aliena a humanidade. Falta conexão com as raízes da espiritualidade. E esse é o ponto forte da poesia oriental.
Cecília Meireles escreveu que existe sintonia entre a vida indiana e a brasileira. Quais são as interconexões entre a poesia dos dois países?
A poesia brasileira tem um equilíbrio entre a poesia oriental e a ocidental. Ela consegue aliar o misticismo oriental e a materialidade ocidental. Nós podemos perceber claramante esses aspectos no poema José, de Carlos Drummond de Andrade. É um poema construído a partir de situações cotidianas bastante trivais, mas, ao mesmo tempo, é metafísico. E agora, José, depois de ter vivido tudo, o que fazer? É uma questão muito existencial, transcendente. O poema Motivo da rosa, de Cecília Meireles, é outro exemplo. A dor na poesia de Castro Alves tem conexão muito forte com o período de opressão que a Índia sofreu no tempo da colonização.
Você é autor do Hino da Terra, que que tem um forte apelo ecológicoe alcançou grande repercussão internacional . Como foi criá-lo?
Eu escrevi o poema em 2008, quando vivia na Rússia. Vi uma imagem da Terra tirada de um satélite e recitei um trecho do Upanishads (texto sagrado hindu). Dizia que o mundo inteiro é uma família. Compreendi que toda a vida está conectada, que há uma relação de interdependência. Escrevi o poema porque acho que essa interdependência deve unir todas as forças de vida. Eu quis compor um hino de alerta e de proteção à natureza. O poema virou música em 2003. Esse hino da terra já foi traduzido para 30 línguas.
Brasília é vista por alguns como uma cidade fria. Qual a percepção que você tem de Brasília?
Eu estou em Brasília há pouco mais de dois anos. Quando cheguei à cidade escrevi um poema que foi publicado na coletânea intitulada Capitals, que reúne poemas de diversos poetas sobre várias cidades do mundo. Nos meus versos, Brasília tem múltiplas facetas, como a profecia de Dom Bosco. Brasília é toda branca como um manjar turco.
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Mas você concorda que Brasília é uma cidade fria?
Concordo que Brasília é branca, é uma serpente pronta para dar o bote. Não existe uma resposta clara para a sua pergunta. Não existe uma resposta categórica e fechada: é preto, é branco. Só posso responder com metáforas poéticas, pois Brasília é uma cidade misteriosa e contraditória. É algo que se situa em uma mancha sem contorno ou definição precisa. Praia imaginária/sem mar, sem areia/onde Brasília se junta,/sábado e domingo, à boemia.;
100 grandes
poemas da Índia
Cadernos de Literatura e Tradução ; Edição Especial/USP
Trechos
Canção da alma
Abhay K.
Sempre estive aqui
como vento que sopra
ou folhas que caem
como sol brilhante
ou riachos correntes
como pássaros gorgeantes
ou botões florescentes
como céu azul
ou espaço vazio
eu nunca nasci
eu não morri.
Traduzido por Luci Collin
À aurora
Jayshankar Prasad
Acorda pois a noite é finda.
No poço do céu a aurora
afunda sua nau de estrelas
ao som das aves em sua canção matinal.
As folhas novas
são um véu, a balançar.
Quão suaves ao longo da vide são os brotos da Primavera.
Acorda pois a noite é finda.
Teus lábios mantêm a vida numa serenidade;
teu cabelo captura o vento sul,
Ah, tu dormes com a intensa canção noturna em teus olhos.
Acorda. A noite é finda.
Traduzido por Luci Collin
A dança de Shiva
Hoshang Merchant
Ao pé de minha cama, Shiva dança
sua perna esquerda por cima de sua cabeça
seu cabelo, fogo, fio sagrado, tornozelo no ar
Na minha cama
ele e eu nos tornamos um pilar
Curvando-nos à oração
Difícil separar deus e suplicante
confluenciamo-nos um no outro
enquanto isso Deus faz a sua própria dança
Tornando o pobre, rico
O velho, jovem de novo
A noite, dia
A nuvem, chuva
Traduzido por Gisele Giandoni Wolkoff
Amigo, este é o único caminho
Sachal Sarmast
Amigo, este é o único caminho
para aprender o caminho secreto:
Ignore os trajetos dos outros,
mesmo as trilhas íngremes dos santos.
Não siga.
Nem viaje mesmo.
Rasgue o véu do seu rosto.
Traduzido por Virna Teixeira
Como ler um livro
Muddupalani
Quando você está lendo, e topa com um espinho,
arranque-o. Use o seu conhecimento
para curar o livro. Não se imiscua com poetas
que vivem de encontrar culpas.
Eles são más notícias.
Traduzido por Ana Paula Arendt