A voz de Tom confunde tudo. É música para criança, para adulto, ou para a criança que está dentro do adulto. A temática infantil surgiu em sua vida desde sempre, mas ele disse que agora teve de pensar diferente, assim que passou a musicar as letras que o artista plástico Elifas Andreato lhe enviou. ;As repetições, por exemplo. Crianças gostam muito de repetições, por isso fiz algumas poucas alterações nas letras do Elifas para colocar um pouco mais desse recurso;, diz. Depois de o sexo estar no centro de seu recente disco Canções eróticas de ninar (2016), o universo infantil é o visitado em Sem você não a (um ;a; assim mesmo, nu como veio ao mundo, sem o ;h; na frente).
As letras seguem a ideia de uma fábula criada por Elifas Andreato, explicada minuciosamente no encarte. ;Esta fábula não começa com ;era uma vez...; porque ela acontece no abecedário, terra onde vivem os habitantes do alfabeto;, narra Elifas. A história, em que ;não há reis nem rainhas, nem princesas, sapos ou fadas;, tem as letras como protagonistas. As maiúsculas precisam das minúsculas e as vogais, das consoantes. ;Elas bem entendem que letra nenhuma escreve nada de fundamental sozinha;.
Além das letras, vivem também nesta terra criaturas como a Curiosidade, que conduz as letras no papel de ;guardiãs do passado, intérpretes do presente e construtoras do futuro.; O Silêncio, outro personagem, resolve sequestrar a Curiosidade para exigir das letras a resposta ao enigma: qual a maior palavra do mundo?. Ele dá uma única dica: ;A palavra começa com E, e tem pelo meio Amor, Alegria, Amizade, Solidariedade, Liberdade e acaba com a última das vogais;.
A música de Tom Zé para esse episódio mata a charada. ;A maior palavra do mundo é eu/ Eu, eu, eu, eu, digo eu/ Simplesmente Eu /Eu, eu, eu, eu digo eu/ Simplesmente eu.; Aí entra Tom Zé e seu poder de fazer do aparentemente frugal o surgimento de um planeta. A música continua: ;O Eu é tão gorduchão/ É tão gigante grandão/ Que o mundo é um pigmeu/ Diante de um simples Eu/ E como, não se sabe como;. E voltamos à pergunta: música para adulto ou para criança?.
Martelo e o silêncio, esse espaço sem o qual não existiria som, onde a palavra será colocada? Ou ainda mais, ;onde a história da humanidade será colocada;, como diz Tom. Houve shows de lançamento do disco no início do mês, em São Paulo, e a reação das crianças a músicas como esta foi das mais gratas a Tom. ;Rapaz, nós resolvemos usar elementos que usamos em shows, mas trocando símbolos para o universo infantil;, conta. O capacete dos integrantes da banda, um artifício incorporado em outros shows de Tom Zé, era golpeado por um martelo. ;Mas, se eu colocasse isso no show de agora e elas fizessem isso em casa, iriam parar no hospital. Trocamos então o martelo por frutas;, diz.
Mas e o Silêncio, esse esperto que cria o conflito na história ao sequestrar a Curiosidade? Tom Zé fala sobre ele na música A praga do Silêncio, abusando das repetições. ;Eu vou te rogar uma praga/ Praga, praga/ Abracadabra te pega/ pega, pega/ Assim como flor arrancada do chão/ Murcha, murcha, ah ah ah/ Estrela tirada do céu/ Apaga, apaga, apaga, apaga, apaga.; ;Isso (no show) foi uma grande felicidade. As crianças subiram no palco. Olha, quando fui fazer esse disco, pedi ao espírito que ele fizesse uma música interessante, e ele respondeu. As crianças, como escreveu alguém, são o mundo a começar de novo.;
Ainda sem resposta à pergunta de qual a maior palavra do mundo, Curiosidade fica presa para sempre, mas as letras começam a se solidarizar. Elas se juntam e começam a pensar no enigma, até que o A se desespera e foge para tentar resolver o caso sozinho. E quem se desespera agora são as outras letras, que sentem a falta que um A faz no alfabeto. O mágico G dá uma solução para o problema, quando faz descer do céu algumas de suas amigas estrelas. Elas ocupam as lacunas deixadas pelo A e fazem a leitura ainda possível. Alivia, mas não cura. ;Sem você não haverá luas/ Nem teremos o azul do mar pra navegar/ Ai ai, hum hum/ Sem você não A/ Sem você não haverá canção;, canta Tom Zé na faixa-título.
As letras e as palavras passam por uma nova revolução desde a chegada das novas tecnologias. Ao mesmo tempo em que as pessoas começaram a escrever mais, o tempo todo, nunca a língua portuguesa foi tão maltratada em abreviações de postagens em Twitter, Facebook e WhatsApp. Tom Zé olha para um buraco mais acima. ;Há mais de 20 anos que a universidade forma pessoas que não sabem ler nem escrever. Antes da internet, a língua portuguesa já estava depreciada pelas autoridades públicas. Acabar com os professores para acabar com os alunos é um projeto.;
Serviço
Sem você não a
Tom Zé e Elifas Andreato
Gravadora: Circus Produções Artísticas
Preço sugerido: R$ 30