Nahima Maciel
postado em 24/10/2017 06:30
É possível que apenas a Revolução Francesa tenha gerado tantos escritos e estudos acadêmicos na área de história quanto a Revolução Russa. E, mesmo assim, as divergências e polêmicas são tão numerosas quanto as publicações. Talvez porque os 100 anos que a Revolução Russa completa este mês não tenham sido suficientes para compreendê-la em todos os aspectos. Amadurecimento histórico é algo que leva um certo tempo. E um século, na escala da História, é pouco. A vantagem é que o mercado editorial aproveita a efeméride para colocar nas prateleiras das livrarias uma boa leva de publicações novas e velhas que ajudam a ter a dimensão da importância desse evento que mudou os rumos do século 20.
Foi em outubro de 1917 que os bolcheviques derrubaram o Governo Provisório ; uma formação simpática às elites e que havia tirado do poder o czar Nicolau II ; e levaram a Rússia rumo ao socialismo soviético, um governo do povo. Mas tudo começou, na verdade, em fevereiro do mesmo ano, quando a Primeira Guerra seguia seu curso dramático e a população trabalhadora de uma Rússia recém-industrializada não suportava mais trabalhar tanto por tão pouco para uma monarquia autocrática e uma nobreza exploradora.
O que vem depois, com Stálin, Lênin, Trotski, KGB, perseguições, ditadura e guerra fria é a história da tentativa de implantar no mundo o primeiro governo socialista teoricamente destinado a libertar o povo da opressão das elites. Uma utopia que dividiu o mundo entre comunistas e capitalistas e que desmoronou por inteiro com o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1991.
A herança deixada pela Revolução Russa ainda é algo que divide e estimula os pesquisadores. ;É difícil, senão impossível, encontrar um consenso a respeito destas questões;, explica o historiador Daniel Aarão, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de A revolução que mudou o mundo. ;Para se chegar a uma resposta convincente, é preciso tomar distância de duas orientações que têm polarizado, desde a época das revoluções russas, as avaliações: de um lado, a demonização proposta por uma certa historiografia liberal e de outro, a celebração acrítica, manifesta na historiografia soviética e comunista.;
Entre as heranças deixadas pela experiência soviética estão os grandes ideais da Revolução Russa, aqueles que se fundamentavam em igualdade social, liberdade política, democracia, relações internacionais baseadas na convivência pacífica. ;Para alcançá-los, porém, será inútil repetir o paradigma de mudança social que acabou prevalecendo no contexto das revoluções russas: a tomada violenta do poder, porque esta demonstrou ser funesta em relação aos ideais referidos;, explica Aarão.
Opressão
Para Luigi Biondi, professor de história contemporânea na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a Revolução Russa mostrou ao mundo que o capitalismo podia ser vencido e que era possível transformar uma revolta popular em revolução, consolidar uma transformação radical e ainda suprimir as tentativas de outros países de anular os resultados do processo. Mostrou, sobretudo, ;que os trabalhadores podem fazer uma revolução, dar fim a um estado de opressão social e de exploração e construir o socialismo, uma nova sociedade que aponta para a igualdade na cidadania social;.
Ou ainda, nas palavras do professor Angelo Segrillo, da Universidade de São Paulo (USP), a Revolução Russa foi um grande laboratório. ;A partir desse ;laboratório;, pode-se observar erros e acertos no caminho de modo que a próxima tentativa de construção de sociedade socialista possa tentar evitar os erros e aprofundar os acertos;, garante Segrillo. Ele acredita que o mundo contemporâneo aprendeu muito com a revolução e com a competição entre o campo capitalista e comunista ao ponto de o próprio capitalismo incorporar medidas socializantes ao criar as social-democracias que hoje definem boa parte do cenário sociopolítico Europeu.
[SAIBAMAIS]Falar das heranças, legados, influências, erros e acertos da Revolução Russa é o mesmo que entrar em um território tão vasto e cheio de extremos quanto falar das grandes revoltas e políticas que mudaram os rumos do planeta. O Diversão separou uma bibliografia com títulos lançados este ano e cuja leitura pode ajudar e orientar na compreensão de um dos períodos mais turbulentos do século 20.
O túmulo de Lênin
De David Remnick.Tradução: José Geraldo Couto. Companhia das Letras, 724 páginas. R$ 94,90
David Remnick era repórter do Washington Post em Moscou quando Mikhail Gorbachev deu início à Perestroika e à Glasnost, série de medidas que pretendiam uma abertura econômica da URSS e uma reestruturação da economia do regime soviético. Era o início do fim do regime socialista e Remnick cobriu tudo in loco. São as memórias desses dias, acompanhadas de uma profunda análise sociopolítica, que o jornalista propõe em O túmulo de Lênin. Dividido em quatro partes, o ensaio não narra apenas os fatos ocorridos entre 1985 e 1991, quando Boris Yeltsin tomou o poder e deu início a uma inacabada transição para a democracia. Remnick, sempre com uma visão americana e muito crítica, faz também uma revisão histórica dos fatos pré-abertura.
A revolução que mudou o mundo
De Daniel Aarão Reis. Companhia das Letras, 248 páginas. R$ 49,90
Daniel Aarão Reis explica que é preciso partir da Revolução de 1905 e seguir até a Revolta de Kronstadt, quando uma insurreição de marinheiros tentou colocar um fim à experiência socialista, em 1921, para compreender o que aconteceu em 1917. ;(...) sem subestimar a importância capital das revoluções de fevereiro e de outubro, trata-se de compreendê-las como elos decisivos de um processo mais amplo, de que fazem parte outros marcos cronológicos ; também fundamentais na formatação de um novo modelo revolucionário, inédito: o comunismo russo;, escreve Aarão, nesse ensaio que perpassa os momentos pré e pós-revolução.
1917 ; O ano que abalou o mundo
Organização: Ivana Jinkings e Kim Doria. Boitempo, 208 páginas. R$ 59
Este pequeno livro reúne 13 ensaios de pensadores, escritores, filósofos, historiadores e escritores que participaram de um ciclo de conferências organizado pelo Sesc/SP sobre a Revolução Russa. Nos textos selecionados pelos organizadores, os eventos ocorridos entre fevereiro e outubro de 1917, assim como suas consequências, são analisados sob diversos aspectos, do político e econômico ao social e cultural. Legados e lições, heranças culturais, vanguardas e experimentações, cinema e até uma comparação entre Adolf Hitler e Joseph Stálin fazem parte do material.
A Revolução Russa
De Sheila Fitzpatrick. Tradução: José Geraldo Couto. Rodavia, 316 páginas. R$ 54,90
A pesquisadora australiana, professora da Universidade de Sidney, narra de maneira muito acessível e clara os fatos e cenários que levaram à tomada do poder pelos bolcheviques em outubro de 1917. A análise crítica permeia o texto com questionamentos sobre a realidade da Rússia pré-revolução e sobre os reais motivos que levaram à deposição de Nicolau II, assim como a trajetória dos governos que se seguiram. Não é um livro didático e um mínimo de conhecimento histórico dos fatos cai bem para se situar na narrativa de Fitzpatrick.