Brasília sempre foi muito viva na memória de Milton Hatoum. Nascido em Manaus há 65 anos, o escritor mudou-se para o Planalto Central aos 15 para realizar parte do então científico. Viveu com dois amigos em quarto alugado em casa da W3 Sul enquanto cursava o Centro Integrado de Educação Modelo (CIEM), uma das experiências educacionais mais celebradas dos anos 1970 na capital. Colégio laboratório que estimulava a criação e o pensamento crítico, a instituição foi fechada pelos militares em 1970 e Hatoum decidiu ir para São Paulo, onde acabou por cursar arquitetura na FAU/USP.
Brasília ficou para trás no tempo, mas nunca saiu da esfera de experiências fundamentais para o escritor. O fechamento do colégio, a militância (não extremada, mas existente) e a perseguição aos estudantes com as sucessivas invasões à universidade desanimou o então adolescente. ;Não aguentei mais, achava que ia ficar muito amargurado, vivia numa solidão atroz. Foram anos importantes para minha formação por causa da escola, das amizades, do primeiro amor, do sentimento. E só voltei 30 anos depois, em 2000. Não queria passar por Brasília;, conta o autor, que no início do século 21 aceitou o convite do então editor de Cultura do Correio Braziliense, Carlos Marcelo, para produzir um material sobre a cidade especialmente para o jornal.
[SAIBAMAIS]
A experiência brasiliense foi, também, a semente que gerou A noite da espera, primeiro volume da trilogia O lugar mais sombrio e quinto romance de Hatoum, que chega hoje às livrarias. O livro marca o encerramento do que o autor chama de ciclo amazônico, do qual fazem parte os premiados Dois irmãos, Cinzas do norte e Relato de um certo Oriente. Brasília e seus eixos são o cenário dessa narrativa que tem o adolescente Martim como protagonista e a cidade como personagem potente. Boa parte da história brasiliense desfila pelas 216 páginas do romance, todas pontuadas pela própria trajetória de Hatoum e sua passagem pela cidade. ;O romance só existe porque vivi e participei de tudo isso. Se não tivesse essa experiência, não haveria romance. Não esse. Pra mim, a experiência de vida é fundamental;, avisa o escritor, que lança o livro em Brasília no Beirute (30/11) e na Banca da Conceição (01/12).
Martim nasceu em São Paulo. Filho de um engenheiro e de uma professora de francês cuja separação traumática deixou marcas, o rapaz muda-se para Brasília com o pai, sujeito amargurado e reacionário, em constante pé de guerra com o adolescente introvertido. O afastamento da mãe e sua constante recusa em encontrar o filho faz nascer um sentimento de perda que pauta a transformação do jovem em adulto, assim como a descoberta do amor. Há uma aura de mistério em torno de quem realmente é Martim, do que pensa e quer, revelado sutilmente pelas relações com amigos e ações enquanto cursa arquitetura na UnB em plena ditadura, no início da década de 1970. Tímido e um tanto ingênuo, o jovem aterrissa em uma turma de militantes, embora não tenha lá convicções políticas muito fortes. É mais no idílio do amor romântico que se concentram os desejos de Martim.
Brasília é protagonista porque está tudo ali no texto de Hatoum: a universidade e seu reitor títere dos militares, a expulsão dos professores pelo regime, as invasões, a livraria tocada por Jorge Alegre (uma homenagem ao livreiro Victor Alegria e sua Encontro) e transformada em espaço de resistência clandestina com exibição de filme proibidos, os apartamentos do alto escalão do governo na Asa Sul, os do baixo, na Asa Norte, o Beirute, a revista mimeografada, motivo da primeira baixa na turma de Martim, o senador que apoia os militares, o diplomata afastado e revoltado. E o exílio em Paris, que é onde Martim dá início à narrativa, escrita em terceira pessoa, mas pontuada por datas e locais, tal qual um diário.
A turma do rapaz é diversa, como já foram as turmas brasilienses dos tempos em que a capital ainda era uma utopia em construção. Há desde o filho de diplomata até o estudante filho de uma cozinheira e morador de barraco na Ceilândia. Era um desejo de Hatoum colocar no romance esse recorte social. ;Não queria só falar do Plano Piloto, era importante falar da periferia de Brasília, integrada ao Plano Piloto. Não sei hoje, mas na época havia uma circulação. Ceilândia era um favelão, não era essa cidade que é hoje. A transferência das favelas dos IAPs foi feita em poucas semanas, mais de 5 mil pessoas foram transferidas no começo de 1971. Isso estava presente na vida do Plano Piloto. E eu sabia que os estudantes de arquitetura visitavam Ceilândia. A ideia era integrar essas cidades satélites ao Plano Piloto e ao romance;, explica o escritor.
A noite da espera é um romance de formação, assim como foram os anos vividos em Brasília. Pode ser um adeus ao cenário da Amazônia, tão presente nos livros anteriores, e um aceno aos tempos presentes de violência e intolerância, mas continua a refletir sobre as relações mais caras no universo literário de Hatoum, aquelas das tramas familiares, das subjetividades, da solidão e do isolamento. ;O drama familiar e as relações sociais, políticas e históricas, esse é meu mundo. É sobre isso que escrevo, essa é minha obsessão;, avisa o autor.
Podemos falar em romance de formação?
Sim, é um romance de formação. Martim é um personagem meio perdido, ingênuo e traumatizado com a separação da mãe e com a aspereza e brutalidade do pai, que por sua vez é a figuração de um macho brasileiro típico, que existe aos milhões aí. O Martim sai de um colégio de padre e cai em Brasília, num grupo de teatro amador em que os jovens são mais vividos do que ele. Há uma defasagem em relação ao aprendizado intelectual, moral, sentimental, político. A saída, para ele, é a solidão. Mas há um encontro amoroso e ele se apaixona. É um romance de aprendizado, de formação, foi a minha intenção desde o início. E isso tem a ver com a formação de Brasília, uma cidade em formação, uma cidade infante, com 8 anos, que está se formando num ambiente repressivo e opressivo. A ideia central é trabalhar no caminho das vidas desse pequeno grupo, porque o romance é isso, ele tem que falar dessas particularidades. Eu quis evitar o romance político, porque, para mim, tão importante quanto o fator externo é a interioridade do Martim, a subjetividade dele, as lacunas, as anotações interrompidas.
Você chegou a militar em Brasília?
Quis sair de Manaus porque quis deixar o útero, a província, a cidade isolada, eu queria estudar a arquitetura, gostava de desenhar, minha mãe me incentivava. Eu fazia pinturas também. Tinha esse desejo de sair da província. Só que não fazia ideia de como seria difícil a vida em Brasília, sozinho, aos 15 anos. Adorava o CIEM, era uma escola laboratório, tinha tudo, 400 alunos e 60 professores, uma loucura, sala de oito, nove alunos, laboratório de foto, gravura, xilo, escultura, júri simulado. O CIEM era na entrada da universidade a gente almoçava no bandejão, o Palácio da Fome. E participei da militância, mas não era assim como eram os trotskistas. Em 1970, eu voltei e o CIEM foi fechado pelos militares.
Tudo isso que você conta no livro, a livraria, o personagem Jorge Alegre, as invasões da UnB, o clima da cidade, tudo tem muita correspondência com a realidade. O quanto tem de história dacidade no romance?
Acho que alguns indícios de como era a cidade, de como as pessoas viviam, acho que isso tem um lado realista que não podia deixar de lado. Não seria nenhum problema eu pontuar. A Encontro foi para fazer uma modesta homenagem à livraria, que foi importante em Brasília nessa época, e ao Victor Alegria. O Beirute, por exemplo, a Brasília, o Plano Piloto e as cidades satélites. Ceilândia, que estava começando e eu tinha que fazer também um corte social. Agora, há várias imprecisões voluntárias. Mas como diz o Borges, a imprecisão na literatura é tolerável porque a realidade também é imprecisa. Não me preocupei muito em pontuar as invasões da UnB, a demissão dos professores, o lado político factual, porque foram tantas violências que seria exaustivo. Falei de algumas que foram terríveis e muito brutas, mas houve outras. Aconteceram muitas coisas.
E o Azevedo, reitor levado ao poder pelos militares, está lá;
Ele está, não poderia se ausentar. E tem os delatores, o professor de antropologia, isso aconteceu. Então tem essa ambiguidade. E os fatos, quando entram na ficção, se tornam ficção. É difícil separar o que é fato e o que é ficção. E eu não quis descrever Brasília, falar da história, porque seria chato ficar sentenciando ou falando sobre a cidade. A cidade é personagem. Se eu conseguir isso, fico muito contente. Queria ter essa visão de Brasília a partir dos personagens, da vivência deles.
O romance também estabelece um diálogo com o Brasil de hoje, com a violência e a intolerância. Como o país chegou ao ponto em que está hoje? O que aconteceu com o Brasil?
Não me surpreende o que está acontecendo. Fico perplexo com a perplexidade de alguns amigos porque o país é conservador, extremamente conservador. O próprio PT foi cúmplice desse desastre pelo envolvimento de figuras importantes do partido na corrupção. Isso tirou a força, a seiva dos setores progressistas, desmobilizou, inclusive. Houve conquistas sociais importantes, mas houve também no governo Fernando Henrique, sobretudo em relação à moeda e aos primeiros programas de Bolsa Escola. O governo Dilma, pra mim, foi desastroso do ponto de vista econômico, político, ambiental e indígena. Mas isso não seria pretexto nem motivo para um golpe parlamentar. É aí que entram as forças obscuras. Não há um limite muito claro entre a direita e a extrema direita no Brasil. O governo Dilma deu pretexto e isso foi uma coisa horrível, para o golpe. E o velho PMDB, a velha política assumiu o país. Será que vale a pena fazer aliança com essas pessoas? Acho que foi um erro confiar nesses caras, confiar nesses partidos de direita e extrema direita, nos partidos religiosos.
Você falou que não fica surpreso de o Brasil ser um país conservador. Então, a sociedade brasileira está representada por esse Congresso?
Sim, eles representam. Mas a gente tem que pensar que a maioria do povo brasileiro é muito mal-informada e pouco escolarizada. E eles querem manter a população à margem da informação exatamente para não perder o poder. Ninguém está pensando na educação. Os ministros que pensaram na educação pública foram o Fernando Haddad e o Renato Janine, que são pessoas comprometidas com o projeto educacional. Os outros, não. Aloizio Mercadante não tem compromisso com a educação, ele não conhece. E hoje a situação é lamentável. Não acho que o Congresso será renovado, isso é uma ingenuidade. A gente reelegeu o Collor, o Amazonino Mendes foi reeleito no Amazonas. A população não consegue pensar politicamente porque não tem acesso à informação. Somos um povo de Fabianos (personagem de Vidas secas, de Graciliano Ramos), ainda com a carência de saber, a incapacidade de compreensão das palavras, do pensamento, a incapacidade de refletir. O processo é muito longo.
De Milton Hatoum. Companhia das Letras, 216 páginas. R$ 39,90