O progresso acenou com promessas de felicidade, mas veio carregado de dissonâncias dramáticas. Avanços incontestáveis na medicina e na biologia que nos preservam de muitos males, mas, também, em contrapartida, rigor, precisão da relação do homem com o meio físico, desaparecimento do vago e do lento, hábitos dominados por métodos positivos governados pelas máquinas, modo científico de existência, aponta Adauto Novaes, organizador do ciclo de palestras Mutações. ;O mundo ganhou, mas o mundo perdeu, conclui Adauto Novaes, que traz a Brasília um miniciclo de quatro conferências sobre o tema Dissonâncias do progresso, a partir de terça-feira, na Embaixada da França.
A realização do ciclo no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Belo Horizonte e em Brasília foi um ato político de resistência. Os patrocínios foram retirados em cima da hora. O Ministério da Cultura alegou que a matéria do projeto ;não é cultura;. O que inviabilizou a busca de patrocínio pela Lei Rouanet: ;Só conseguimos realizar o ciclo em razão do apoio do Banco do Desenvolvimento de Minas Gerais e da Embaixada da França;, conta Adauto.
Nesta entrevista, Adauto fala sobre as consequências do império da tecnociência: a velocidade dos meios virtuais, dispersão das informações, a hostilidade ao espírito, a ausência de valores e o universo da barbárie: ;A barbárie é uma era dos fatos, dizia Valéry. Uma sociedade que se estrutura sem as coisas vagas. São os ideais políticos, as utopias de transformação, os ideais artísticos. Vivemos os acontecimentos apenas;
Entrevista // Adauto Novaes
Qual o cenário atual em torno do conceito de progresso?
Nunca se falou tanto em progresso nos discursos políticos, nos discursos dos financistas e nas políticas públicas. O Karl Kraus disse que progresso é um clichê sem conteúdo, mas com enorme efeito sobre a sociedade. Acho que é mais do que um clichê; é uma crença compartilhada tanto pela esquerda quanto pela direita. O progresso não chega a ser um conceito, mas sempre procura de alguma maneira se associar a conceitos para ganhar legitimidade. É o caso de liberdade e progresso.
É difícil se confrontar com a ideia de progresso?
Há uma relação muito forte entre o nascimento da ideia de progresso, que surge no iluminismo, com o movimento científico. Não é por acaso que progresso e ciência nascem juntas. O iluminismo era a crítica radical às crenças religiosas. A crença na ideia de progresso se tornou religiosa. O grande desenvolvimento científico e técnico provocou uma retração dos valores que constituem a sociedade.
É possível viver sem valores?
Esse é um dos grandes problemas. Paul Valery tem uma frase maravilhosa. Ele diz: ;Nós sabemos hoje que somos mortais, depois da Primeira Guerra Mundial;. Valery refletia sobre o avanço da ciência e da tecnologia na guerra. Alertou também: ;Temo que o espírito esteja se transformando em coisa supérflua;. Os valores tendem a perder sentido, o humanismo fica para trás.
Quais as consequências da situação?
De um lado o iluminismo aboliu um grande número de certezas e consolidou uma das maiores invenções da cultura, que era a dúvida. Mas a ciência e o progresso falam com a certeza de um mundo melhor. E vemos uma decadência geral e um domínio da barbárie. Não sabemos onde vamos chegar.
O período de instauração da modernidade foi marcado por muitas crises. Mas o que diferencia as crises da era moderna das mutações da era pós-moderna?
A crise abria espaço para a multiplicidade de concepções e provocava saltos de qualidade. As mobilizações dos trabalhadores conquistaram muitos direitos. A mutação que abriu para a modernidade, da idade média para o renascimento, foi precedida de grandes concepções culturais, filosóficas, artísticas. E nós herdamos muito dessa tradição. A mutação de hoje é feita pela tecnocracia, biotecnologia e a revolução digital. Como disse Heidegger, a ciência não pensa. Valéry temia que o espírito se tornasse supérfluo no mundo dominado pela técnica. E, de fato, com a tecnização extrema, viramos uma peça dentro da máquina do mundo.
Que mundo se constitui quando o espírito se torna supérfluo?
A barbárie é uma era dos fatos, dizia Valéry. Uma sociedade que se estrutura sem as coisas vagas. São os ideais políticos, as utopias de transformação, os ideais artísticos. Vivemos os acontecimentos apenas. Inclusive uma proliferação das religiões muito sectárias em função disso. O homem não encontra ideais políticos em que se resguardar. E apela para os fundamentalismos. Que seríamos nós sem as coisas que não existem?, indaga Valéry. Tenderíamos a um estado de natureza, não cultural, a um estado de barbárie. Não quero ser pessimista, mas vivemos um momento trágico de barbárie.
Em que medida a velocidade das redes sociais contribui para instaurar o estado de barbárie?
Acho que é muito contraditório. Tendo a considerar que a internet não favorece o pensamento e a democracia. Eugenio Bucci fala em sua palestra sobre os fakes das grandes redes de informação. As pessoas estão acreditando muito nessa grande farsa. A imprensa deixa de ser a grande mediadora entre a sociedade e o poder. Agora, outro aspecto é a enorme quantidade de informação que não permite o tempo necessário para analisar o que está lendo. As novas gerações têm muitas informações, mas não têm o conceito para analisar. Fizemos um ciclo de conferências sobre a preguiça, não era para botar a mão no bolso e não fazer nada. A preguiça da qual tratamos é o tempo necessário para cultivar as obras de arte e de pensamento. Os avanços tecnológicos e a rapidez não permitem um mínimo de pensamento. Tudo é veloz, volátil e ponto final.
As manifestações durante a Copa do Mundo de 2014 despertaram a esperança de que as redes sociais poderiam mudar a relação com a política. Mas em que medida eles favorecem ou minam a democracia?
A democracia é mais complicada. A maioria é convidada a opinar na hora do voto, mas sem ter os instrumentos e o conhecimento para exercer uma escolha lúcida. Existem barreiras, manipulações e jogos de interesses que impedem o cidadão de exercer plenamente a democracia.
Quais as perspectivas de mudança e de superação do estado de barbárie?
É a pergunta mais difícil que existe. Estamos entre dois mundos, o que não acabou e o que não começou. A gente não tem ainda os elementos necessários. Os valores perdem o sentido: liberdade, solidariedade, amizade e justiça. Não quero ser pessimista, mas levaremos um bom tempo para chegar a um mundo mais equilibrado.
O esquecimento da arte
;A tecnociência faz o que nenhuma predicação ou discurso ideológico conseguiu fazer: o celular reúne todos em torno de um só objeto, mas, ao mesmo tempo os dissolve na solidão individual, expressão de um verdadeiro ;egoísmo organizado;. Sabemos hoje que todas essas transformações apresentam dois aspectos, mas pode-se dizer que as invenções modernas não apenas não esclarecem o espírito como levam ao esquecimento memoráveis produções de obras de arte, de cultura e de pensamento produzidas durante séculos;.
Adauto Novaes, em texto para o ciclo Dissonâncias do progresso
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Local: Embaixada da França Espaço Le Corbusier, SES . Av. das Nações, Lote 04, Quadra 801 www. ambafrance-br.org. tel: (61) 3222-3999.