Com olhar sobre questões de gênero e liberdade sexual, a mostra Queermuseu ; cartografias da diferença na arte brasileira, entrou em cartaz em 14 de agosto e permaneceu até o último dia 10 de setembro. Foi fechada um mês antes do previsto após o centro cultural apoiado pelo banco Santander, que sediava a exposição, sucumbir às críticas de grupos religiosos e do Movimento Brasil Livre (MBL) nas redes sociais.
A interrupção abrupta pegou público e especialistas de surpresa quanto ao conservadorismo da ação. Se o terreno das artes plásticas anda movediço quanto a essas temáticas, no mundo das HQs a liberdade tem sido palavra de ordem quando o assunto são publicações relacionadas à sexualidade.
[SAIBAMAIS]
Uma comprovação se dá com a HQ D.E.E.P (Diário estético e ético da putaria), obra póstuma do quadrinista Mateus Gandara, morto em 2015 em consequência de um câncer de pulmão. A perda precoce comoveu amigos e, dois anos depois, eles decidiram homenageá-lo. O quadrinho está à venda no site da Vudu Comix, selo fundado por ele em 2013. O valor arrecadado será destinado à criação de uma exposição no Museu Nacional e a publicação da obra completa do artista.
A D.E.E.P havia sido finalizada em 2014. A HQ seria lançada em novembro daquele ano, mas precisou ser postergada quando o quadrinista foi hospitalizado. Inquieto sobre a forma como as pessoas lidavam com a sexualidade, Mateus Gandara convidou cinco modelos. Um casal homossexual, um casal heterossexual e uma mulher solitária. Eles abriram a intimidade ao artista plástico, que ilustrou as vivências íntimas com os traços precisos pelo qual ficou conhecido. A publicação está à venda por R$ 38 no site da Vudu Comix.
Premiadas
Recentemente, outra HQ que se aproxima da temática da sexualidade (mais discreta, se comparada à explícita D.E.E.P) entrou nos holofotes. No início do mês, o Troféu HQ Mix (o Oscar dos quadrinhos nacionais) na categoria Web Quadrinhos foi dado a As empoderadas, projeto criado pela quadrinista Germana Viana, que defende os direitos da mulher ; inclusive o de decidir o que fazer com o próprio corpo. As tirinhas foram lançadas pela Pagu Comics, selo que pertence à plataforma Social Comics, um serviço de streaming de quadrinhos.
Recifense criada em São Paulo, Germana Viana guarda encanto por este universo desde muito pequena. Ainda pré-adolescente se deparou com duas revistinhas em que estavam as super-heroínas Elektra e Jean Grey. ;Ver duas mulheres tão poderosas na capa foi definitivo para que minha vontade de um dia trabalhar com isso surgisse;, recorda-se.
Ela trabalhou como designer e letrista de revistas licenciadas no Brasil para empresas como a Panini. Também foi agente de artistas brasileiros para o mercado norte-americano. Apenas em 2013 saiu dos bastidores ; com um empurrãozinho do artista americano George Pérez ; e começou a produzir Lizzie Bordelllo e as Piratas do Espaço. A primeira edição de As empoderadas surgiu três anos depois, em 8 de março, Dia Internacional da Mulher.
;Uma das personagens é uma moça negra mãe de duas gêmeas. Não sou mãe nem negra, então pesquiso, converso com pessoas com as características que quero colocar nas personagens, pergunto se estão adequadas ou se estou reproduzindo, sem perceber, algum estereótipo desinteressante ou ofensivo. Mesmo que meu quadrinho venha a ser divertido, preciso ter essa responsabilidade, porque acredito que todo e qualquer autor precisa mostrar o quão lindo e diverso é o mundo;, afirma.
Duas perguntas | Germana Viana
Quão misógino é o mundo dos quadrinhos?
Olha, é complicado. Já andou muito, mas ainda é no ritmo de passo de formiguinha. Se por um lado temos colegas de braços abertos pra nos receber no mercado, outros variam entre o descuidado, por não ter a sensibilidade de perceber o que enfrentamos por ele até ele enfrentar o mesmo até o absolutamente desrespeitoso, como aconteceu comigo numa das feiras de quadrinhos mais recentes que participei. Um leitor estava olhando meu material, conversando comigo e um colega, que eu nem conhecia pessoalmente, simplesmente saiu da mesa dele, atravessou o espaço onde estava e veio com o material dele na mão, sem pedir licença, me cortou e começou a falar do material dele porque, sei lá, tinha esquecido de falar antes. A sorte foi que o leitor foi um lindo, interrompeu o cara e falou que depois passaria na mesa dele, e novamente se voltou pra mim, com olhar interessado. E olha, estamos falando apenas da misoginia aqui, agora pense que mesmo entre as mulheres, a quantidade de autoras negras e trans é muito pequena. Ou seja, ainda tem muito a ser trabalhado.
Qual a importância de ver selos como o Pagu e a sua revista ganhando reconhecimento no Troféu HQ Mix, acusado de não privilegiar o trabalho feminino em edições anteriores?
Selos como Pagu são importantíssimos porque ainda não temos o mesmo espaço que os autores na mídia especializada. Isso vem melhorando muito, mas ainda não existe uma igualdade. Existem quadrinistas maravilhosas, tanto roteiristas quanto artistas que não recebem o destaque merecido e selos assim, fortalecem e expõem para o mercado e para a mídia especializada novas caras. Em um mundo ideal, um selo como Pagu se formaria de maneira orgânica, apenas com amigas com vontade de trabalhar juntas (como aconteceu comigo e com Ana), mas ainda que todas tenham virado amigas, o que foi uma delícia, o intuito de Pagu foi mesmo trazer para o destaque o talento de várias profissionais que ainda não conseguiam espaço.
SERVIÇO
Obra póstuma de Mateus Gandara. Vudu Comix, 112 páginas. Preço: R$ 38.
De Germana Viana. Pagu Comics. Disponível para visualização no Social Comics.