A história da vida de João Carlos Martins é hollywoodiana e não haveria como o filme-biografia sobre o pianista ser diferente. Tudo começa com o jazzista Dave Brubeck pedindo ao diretor Clint Eastwood que filmasse a vida de Martins depois de uma matéria no The New York Times insinuar a impossibilidade de um novelista conseguir pensar em história tão cheia de dramas.
Martins desistiu de Eastwood quando Bruno Barreto entrou na trama. ;Ele disse que o Clint podia até ser um grande diretor, mas que um filme meu tinha que ser feito no Brasil;, conta. Para chegar ao roteiro de João, o maestro, que estreia amanhã com direção de Mauro Lima e produção da LC Barreto, foram dois roteiros e uma quase desistência do biografado.
O longa é, na definição de Martins, um musical. Alexandro Nero faz o pianista dos 35 anos até os dias de hoje e Rodrigo Pandolfo vive o músico dos 15 aos 30, mas é o pequeno Davi Campolongo, o ator de 11 anos selecionado entre 50 crianças para viver o maestro na infância, a grande revelação. ;Ele vai ser o novo Nelson Freire, o novo Arthur Moreira Lima e vai me substituir;, garante Martins. Davi não sabia tocar piano quando começou a atuar no filme. Por causa do personagem, resolveu aprender. ;E ele tocou o Concerto n; 27 de Mozart comigo. Começou a estudar há um ano;, conta o maestro.
A trilha do filme são as gravações do próprio João Carlos Martins, que registrou toda a obra de Johann Sebastian Bach e se tornou uma referência ao lado do lendário Glenn Gould. Boa parte das cenas internas foram realizadas na casa do maestro Eleazar de Carvalho e um dublê de mãos ficou responsável pelos detalhes, mas os atores também foram acompanhados por uma professora para manter a sincronicidade. ;O filme, na parte musical, é 100% do que aconteceu na minha vida de 1960 para cá;, avisa Martins. ;E, na parte de dramaturgia, é baseado na minha vida, com a criatividade do diretor.;
No longa, os quatro relacionamentos do maestro foram reduzidos a dois casamentos. Fernanda Nobre faz a primeira mulher e Alinne Moraes vive Carmem, com quem o maestro é casado hoje. ;No filme, eu também apareço como um pai ausente, com um filho na barriga e um no berço, e sou mostrado como uma pessoa obstinada pela música;, diz, ao frisar que alguns episódios não retratam necessariamente a realidade.
Os relacionamentos afetivos e familiares podem ter um quê de ficção, mas Martins garante que a parte dedicada aos acontecimentos musicais são muito fiéis à realidade e especialmente dramáticas. ;Assisti ao filme três vezes e chorei muito no final, porque o Mauro Lima pega fundo;, revela. Aos 6 anos, o maestro sofreu a primeira operação, para retirar um tumor da garganta. Nos anos seguintes viriam outras 25 cirurgias.
Gravação
Aos 16, ele começou a sentir os primeiros efeitos do que se transformaria em uma lesão por esforço repetitivo (LER). Aos 18, em 1965, sofreu um acidente durante um jogo de futebol em Nova York, que comprometeu a mão direita. Em 1995, um assalto durante a gravação de um disco na Bulgária resultou em lesão cerebral que afetou a mão esquerda e, em 2002, Martins descobriu um tumor na mesma mão. Foi o momento de deixar para trás o piano e mergulhar na carreira de maestro. À frente da Orquestra Bachianas Filarmônica Sesi São Paulo, foram mais de 1.500 concertos para 15 milhões de pessoas nos últimos 12 anos.
A vida do maestro tem também episódios anedóticos que entraram para o filme. Ele começou a carreira internacional após ganhar o Concurso Pablo Casals. Era um adolescente quando começou a viajar para se apresentar e, aos 18 anos, perdeu a virgindade em um bordel em Cartagena (Colômbia) durante a turnê que o levaria à consagração nos Estados Unidos.
O então jovem pianista passou três dias enfurnado no bordel e o episódio é narrado no filme como se tivesse acontecido em Montevidéu. ;Não dava para deslocar tanto no tempo e no espaço em um filme de duas horas;, explica o diretor, Mauro Lima, que também deixou de fora um período de 15 anos durante os quais Martins largou a música para atuar no mercado financeiro, ser empresário de box, diretor de siderúrgica e secretário de cultura do governo de Paulo Maluf. Na política, se envolveu em desvio de dinheiro para caixa dois de campanha eleitoral, mas o episódio não está no filme. ;A coisa da política era um parêntese difícil de contar e me senti dando satisfação;, avisa Lima. Para Martins, faz sentido o escândalo do desvio não ser narrado no longa: ;O filme é sobre minha vida na música, são 70 anos dedicados à música, por que falar de um único ano em que errei em ter entrando na política?;.
Roteiro
Embora notável, a história de superação de João Carlos Martins não teria sido suficiente para Mauro Lima fazer o filme. ;Não me interessava só contar esse viés da superação. Fui entender o tamanho do artista que ele foi quando tive o primeiro contato com ele;, diz o diretor, que não tinha muita ideia da complexidade da trajetória do pianista quando topou o convite da LC Barreto Produções.
Para Mauro, João Carlos Martins, até então, era um nome proeminente da música erudita que havia perdido os movimentos das mãos e era pai de um colega de infância. Quando começou a pesquisar, se deu conta de que todos os seus ídolos aplaudiam a obra de Martins, inclusive Dave Brubeck e a banda Emerson Lake & Palmer. Baseado em entrevistas com o próprio pianista, no livro A saga das mãos (Luciano Ubirajara Nassar) e na pesquisa para a biografia Maestro: A volta por cima de João Carlos Martins, de Ricardo Carvalho, Lima montou um roteiro com foco na trajetória musical.
Ao longo de seis décadas de carreira, o maestro gravou 30 discos dedicados à obra completa de Bach, boa parte deles considerados essenciais na discografia de música erudita, além de Mozart Chopin e uma belíssima gravação do Concerto para mão esquerda, de Maurice Ravel. Além disso, João Carlos Martisn também já havia sido biografado no documentário alemão A paixão segundo Martins, de Irene Langemann, e no filme belga Rêverie, de Johann Kenivé e Tim Heirman.