Locarno (Suíça) - Quem diria? Lucky Luke o cowboy solitário que fumava um cigarro atrás do outro, antes de deixar de fumar nos desenhos franceses e passar a morder no lugar um ramo de trigo, tem noventa anos e vive no Arizona. Com uma diferença, nos EUA, pátria do Marlboro, Lucky Luke não conseguiu se libertar do tabaco e fuma, mais de um pacote, apesar da insistência de seus amigos preocupados com sua saúde. Isso é o que mostra, sem precisar alardear, o filme Lucky, um dos bons na competição.
Se o filho de David Lynch, o também cineasta e ator John Carroll Lynch, tivesse encomendado a alguma agência, num casting, um sósia de Lucky Luke não teria achado mais perfeito que Harry Dean Stanton, um idoso, como se diz, amigo do roteirista que, antes tinha pensado até em fazer um documentário sobre Stanton, cujo humor, ironia e lucidez impressionam.
Mas na pele de Lucky Luke, o velho amigo, saiu-se melhor e ficou sob medida. Impecável.
A um pé da cova, como também se costuma dizer, Lucky Luke sem parkinson e sem alzheimer, vive uma outra dimensão, sem qualquer referência ao seu passado no mundo do cartunismo, uma personagem saborosa, irreverente, de ateu empedernido, de crítico dos agentes de seguros de vida e de tudo o mais, tão típicos do mundo norte-americano.
Um traço une Lucky Luke aos demais idosos ; a mania das palavras cruzadas e do número de letras para preencher as casas horizontais e verticais.
Aposentadoria
No contraponto desse Lucky Luke longevo, um animal capaz de viver bem mais, até 200 anos, com a vantagem de não cair nas novas leis de previdência ; uma tartaruga com um nome talvez simbólico Presidente Roosevelt. É justamente David Lynch que, no filme, vive, como ator, a preocupação do proprietário de uma velha tartaruga, que fugiu, nomeada junto a um advogado como sua herdeira, quando morrer.
Lucky é uma pérola rara neste Festival de Locarno, que nos faz sorrir, sem ter humor negro, mesmo se sabemos que Stanton, apesar de sua ginástica light toda manhã e de sua aparente saúde confirmada pelo médico, está a um passo do nada e talvez nem sobreviva ao sucesso do filme de John Carroll Lynch.
O cinema é cotado como entretenimento mas, com frequência, e uma recente Palma de Ouro confirmou, dirige suas câmeras para a visão da realidade do efêmero da vida, a velhice, que alguns conseguem controlar embora sem esconder seu efeito devastador, como o irônico Lucky. Porém, uma grande parte, embora se fale muito em maior esperança de vida, provavelmente para aumentar a idade da aposentadoria, vive geralmente doente e impotente, já meio-deitada no caixão.
Rui Martins, está em Locarno, convidado pelo Festival Internacional de Cinema.