Corria o ano de 1962. Recém-inaugurada, Brasília abria, timidamente, as portas para o balé. "Não tinha nada", lembra Norma Lillia Biavaty, pioneira da dança na capital. Com a postura impecável, ela conta sobre o cenário do balé na capital federal hoje. A dança, consolidada com dificuldade nos primeiros dias, continua tentando ganhar espaço e reconhecimento na cultura da cidade.
"No início, pipocou. Eram escolas de balé para todos os lados", conta Norma, ao recordar-se da inauguração de sua escola, em 1972. Ela reforça que, mesmo com o surgimento acelerado de companhias de dança, o balé sempre foi sustentado por organizações privadas e nunca teve um apoio público apropriado para destacar-se na região. "Não adianta: as pessoas têm que entender que dança também é cultura. Nunca nos deram um lugar adequado. A gente não tem um corpo de baile até hoje. Assim é difícil."
Mesmo sem saber ao certo qual palavra usar, Norma não hesita em dizer que o balé, na tentativa de ter uma identidade, se banalizou ao longo do tempo. "É uma coisa muito séria, não é qualquer um que pode fazer. E virou bagunça. Perdeu o conceito do que é. Não é só chegar e dançar, entende? Balé é preparar seu corpo para a vida."
Com a mesma perspectiva, Maria do Carmo Poggi arriscou abrir um estúdio de dança ; o Étude Seasons ;, para trabalhar a didática que ela mesma criou. Enquanto folheia cuidadosa e orgulhosamente o portfólio da escola, ela explica: "Veja, Étude vem de estudo, em francês. Seasons significa estações, em inglês. Aqui a gente estuda de acordo com as estações." Nascida em Ribeirão Preto, Maria destaca-se no ensino do balé em Brasília há mais de 20 anos. Ela frisa, incontáveis vezes, que se preocupa na formação do bailarino, da infância até a idade adulta. "Aqui, a gente forma bailarinos. E predomina mesmo quem quer se profissionalizar."
Nesse ritmo, os alunos de Maria Poggi ensaiam para viver de dança. Como mentora da renomada escola inglesa Royal Academy of Dance, Maria investe com esperança nos alunos, mesmo diante de um cenário precário. "Dou bolsa de estudo para 30 alunos aqui. Mesmo quem não tem condições e quer, dança. E dança bem."
Nos bastidores
Mesmo que Maria treine incessantemente seus bailarinos, ela sabe que o balé é uma atividade paralela em meio a tantas outras. Thomas Côrtes, 27, é um dos bolsistas de Maria. Ele dança na Étude há 8 anos e leva o exercício como atividade complementar ao trabalho, apesar de ter o sonho de dançar profissionalmente. Publicitário, ainda almeja lecionar a arte de bailar com as sapatilhas.
"Quero terminar o último grau da capacitação para ganhar a licenciatura. Sou muito apaixonado pela dança, mas aqui não tenho condições de viver só disso." Côrtes acrescenta que os que não têm oportunidade de bolsas, como ele, desistem. "O balé acaba sendo uma dança bem elitista, levando em conta todo o histórico. Como a gente não tem um governo com um corpo de baile aqui, acaba sendo exclusivo apenas para quem pode pagar", lembra.
Com a cintura envolta por um tule branco e comprido, Raysla Godoy também detalha o encanto ; e desencanto ; de ser uma bailarina em Brasília. Aos 20 anos, idealiza a carreira desde criança. "Meu objetivo de vida era entrar para uma companhia internacional, já que aqui eu não tinha muitas oportunidades", relembra.
Durante a adolescência, Raysla investia no sonho com firmeza e disciplina: praticava com as melhores professoras, dançava nas mais renomadas academias, aplicava para exames em escolas estrangeiras e chegou a ir para o festival Dance Open, em São Petersburgo, na Rússia. A viagem, que parecia ser a porta de entrada para um futuro brilhante em cima das sapatilhas, perdeu o brilho. "Tive um choque", rememora. "Vi um cenário de estereótipo muito forte e me desiludi. Comecei a me questionar sobre esse meio em que eu queria viver, é uma entrega muito grande."
Raysla considerou a viagem um divisor de águas. Voltou para Brasília sem a carreira internacional, mas não soltou o coque. Hoje, ela faz faculdade, estágio, dá aulas de balé para crianças e dança nas horas vagas. "Ainda sou bailarina e sempre vou ser", afirma, com vigor, enquanto auxilia as menininhas nas sequências de pliés.
Todas as idades
Se em Brasília é difícil viver para dançar, a opção é dançar para viver. Assim escolheu Cláudia Vianna, 51 anos, que decidiu recriar o cotidiano dançando. "O balé, para mim, não é o tempo do trabalho, nem da casa, nem dos filhos, nem da família. É um momento meu, individual." A oficial de justiça subiu novamente nas sapatilhas após 30 anos afastada. "Interrompi o balé quando comecei a trabalhar. Daí, casei, tive filhos. Agora conto os dias para ir às aulas de novo", declara. Cláudia pertence a uma nova categoria de bailarinas. Ao contrário do cenário passado, em que a maioria dos adeptos eram crianças, meninas ; que tinham a atividade como meta de vida ;, o palco hoje é das mães. Para elas, o balé virou hobby, prazer.
Mônica Maia tem 20 anos de história com a dança. Pupila de Norma Lillia, ela revela que, em sua escola, 64% dos alunos são adultos, predominantemente mulheres, a partir dos 30 anos. Ela explica que notou essa diferença de público a partir de 2014.
Segundo a profissional, tal realidade se envolve não só à crise econômica no país, mas, novamente, às opções de mercado de trabalho na cidade. Ela argumenta o fato de que as crianças, quando chegam à adolescência, riscam o balé da agenda para dar espaço ao vestibular, ao cursinho, à faculdade. ;Brasília é conhecida como a cidade do concurso público. Então, vem muito daí também. O balé aqui é mais atividade extra, pra relaxar e espairecer, do que profissão de fato.;
É o fim?
As 648 páginas do livro Anjos de Apolo, de Jennifer Homans, criticam o balé como uma arte incapaz de se inovar por estar demasiadamente atrelada ao passado. A ex-bailarina norte-americana defende a ideia de que a dança, na atualidade, deixou de lado a poesia. Estaria o balé clássico, então, em seu último ato? Ao estudar sobre a evolução da dança aristocrática, Homans argumenta que a tradição do balé é oral, passada de geração em geração pelo relacionamento entre professor e aluno.
Nesse sentido, Norma Lillia acredita que, enquanto isso, juntar conhecimentos e experiências possa ser o segredo para tentar remodelar o campo da dança. "Por que não passar o que temos para quem é mais jovem? Pra quem tem mais tempo pela frente? Afinal, é passagem de conhecimento. Um aprende com o outro", questiona.
É por isso que Norma Lillia e Mônica Maia resolveram dançar juntas. Em uma parceria que dura quatro meses, Norma dá aulas na academia de Mônica, e Mônica se inspira na mestra ao ensinar a arte. As duas são cúmplices na mistura da experiência com a visão de futuro. "A Lillia não tem muita esperança nessa situação toda. Mas acredito que eu, quanto uma profissional mais jovem, consigo entender que, se ela tem a maturidade para agregar, eu tenho a visão de futuro."
Enquanto o Teatro continua com palcos inativos, e o Centro de Dança do Distrito Federal não abre as portas após quatro anos de reforma. Lorena Guerra, proprietária do estúdio de dança que leva seu nome, também acredita na recuperação do cenário. "Apesar de tudo, creio que o balé está em franca expansão aqui."
A empresária e professora abriu a escola há apenas quatro anos, coincidentemente na época crítica da economia e da dança. Ela defende que a instabilidade nada mais é do que oportunidade para mudanças. "A crise veio para a gente inovar, para termos a chance de fazermos algo novo. Temos o balé como um método tradicional que pode e deve ser aperfeiçoado. Daí a diferença entre engessamento e tradição", detalha. A inovação defendida por Lorena vem tanto da técnica como da didática. "Não dá mais para oferecer apenas o clássico. A gente traz outros ritmos para os alunos."
Possibilidades
Gis;le Santoro, viúva do maestro Cláudio Santoro, compartilha do mesmo pensamento. Com uma vida dedicada à dança e cidadã honorária de Brasília, assim como Norma Lillia, ela relata como projetos bem elaborados e com visão de futuro podem melhorar (ou, pelo menos, tentar) o cenário na capital.
Assim, à frente do Seminário Internacional de Dança há 27 anos, ela visa abrir o leque de possibilidades para os bailarinos brasilienses. "Como outros profissionais, eu bato a cabeça na parede há anos para tentar melhorar a dança aqui. Mas é a partir de projetos, como o seminário, que a gente começa a ver resultados;, argumenta. O evento anual liderado por Gis;le tem como intuito o aperfeiçoamento profissional dos bailarinos, a maioria de comunidades carentes, com abertura para bolsas de carreira internacional. "Aqui, eles não têm chance. Se quiserem sucesso, têm que ir pra fora, e o seminário abre porta para isso." O evento ocorre este mês, em programações alternadas no anexo do Teatro Nacional e no Teatro Dulcina de Moraes.
Em 2016, Maria Poggi também levantou voo para um novo projeto. A Companhia Brasiliense de Dança foi criada com o intuito de dar continuidade aos estudos performáticos e oferecer aos bailarinos oportunidades de carreira. "Já que o balé em Brasília não é reconhecido, na companhia eles são valorizados. E todos têm muito potencial de ir para fora", acrescenta.
A herança do balé em Brasília é deixada para quem decidiu se entregar à persistência. Apesar dos impasses, Ana Júlia Paiva se dispôs, aos 22 anos, a viver de dança. Como professora e bailarina, ela se compromete: "Não posso me acomodar. Na verdade, preciso me incomodar com as coisas que estão ruins. É hora de implementação e mudança." O futuro, agora, pertence a todos que confiam com afinco na arte de contar histórias sem voz.
*Estagiária sob a supervisão de Igor Silveira