;Alguém pode desligar esse mundo um instante?;, canta Lucas Santtana em um dos versos de Modo avião. A canção que dá título ao novo trabalho do músico apresenta o tema que sustenta o audacioso projeto que mistura música, literatura e artes plásticas: o mundo contemporâneo hiperconectado e sem pausas.
;Isso me deixava, e ainda me deixa, exausto em determinados dias. Parece que falta uma paz interior no mundo. As pessoas estão exauridas, vivemos o que o filósofo coreano Byung-Chul Han chamou de ;a sociedade do cansaço;;, conta Lucas. Reflexões como essas se transformaram naturalmente em Modo avião, segundo o cantor.
Esse excesso de conexão, aponta Lucas, também tem minado os momentos de pausa no cotidiano. ;Estamos viciados na dopamina que nosso cérebro descarrega a cada consulta ao celular, como se lá fôssemos encontrar uma grande foto, uma grande notícia, uma grande mensagem. E isso vai eliminando cada vez mais o tempo consigo mesmo, a pausa;, acredita.
Nesse projeto, Lucas achou que era o momento de ir além da música e criou, com o escritor J. P. Cuenca, uma narrativa que é encenada entre as canções do disco. Além disso, um livro com ilustrações de Rafael Coutinho foi produzido especialmente para o projeto.
;Decidi ser músico aos 12 anos e dediquei os últimos 34 anos a isso. Esse já é o meu sétimo álbum. Senti e sinto um enorme desejo de sair da música. Não de parar de fazer música, porque é a minha missão, mas de fazer ela migrar para outras plataformas artísticas;, explica Lucas.
No processo de encontrar outras formas de se expressar artisticamente, Lucas acabou desenvolvendo o conceito de audiofilme, em que a história é contada por meio dos diálogos, textos e de canções. ;Descobri durante o processo de feitura que não existia nada parecido no mundo. Foi superexcitante e ao mesmo tempo desesperador criar e aprender ao mesmo tempo;, revela.
A narrativa de Modo avião se costura entre as canções, que são paralelas ao texto. ;Elas não funcionam como num musical ou ópera, em que a letra da canção é uma continuação do texto literário das cenas.; A edição foi fundamental para chegar ao resultado final, lembra Lucas.;Foi um verdadeiro quebra-cabeça. E um processo de edição também. Tive que ir cortando muitas coisas, aprendendo que algumas coisas não funcionavam etc.;
Para ambientar as cenas, Lucas optou por gravar o disco utilizando microfones binaurais. Esse tipo de microfone permite que a audição seja 360; e se aproxime mais do ouvido humano. ;As cenas acontecem em lugares, numa praia, numa floresta, num restaurante, etc. Então, apenas com o som, tinha que fazer a pessoa se sentir naquele lugar. Ele foi fundamental para levar as pessoas para esses lugares e fazê-las se sentirem lá;, ressalta.
Música para ler
Na outra ponta de Modo avião está J. P. Cuenca. O premiado autor contemporâneo nascido no Rio de Janeiro aceitou o convite de Lucas Santtana mesmo sem ter ouvido as músicas. O hibridismo do projeto somado à admiração antiga ao trabalho do baiano foram suficientes para dizer sim, sem risco de arrependimentos posteriores. A essa altura, Rafael Coutinho já estava no projeto. ;Os textos foram concebidos depois das composições. O disco já tinha uma espinha dorsal. Escrevi os diálogos, depois o Lucas mexeu. Ficou um texto a quatro mãos;, conta o escritor.
Habituado a trabalhar em teatro, cinema e música, isoladamente, J. P. Cuenca ainda não tinha feito uma experiência com a literatura cumprindo papel de nova camada narrativa sobre uma obra sonora. ;É algo bastante inédito para mim ou para os três. Cada um de nós está pisando em terreno desconhecido;, evidencia.
Obra ficcional, Modo avião trata, por fim, de vidas condicionadas a estímulos eletrônicos. Ou, como Cuenca prefere chamar, sobre a solidão acompanhada ; duas pessoas que estão ao lado uma da outra e não se enxergam. ;Temos pouco tempo de escuta interna, pouco tempo para pensar. Temos que pensar a partir de um estímulo que vem de fora de nós mesmos, e muito picotado. Ver um filme, ler um livro ou escutar um disco inteiro parece um desafio enorme. Fazer isso sem checar o e-mail ou WhatsApp no meio do caminho... O que Lucas quer com essa experiência é que as pessoas embarquem nesse modo avião, nessa experiência imersiva;, afirma.
O projeto gráfico
Como de praxe, a Lote 42 fez do projeto gráfico de Modo avião um elemento tão importante quanto os textos de Lucas Santtana e J. P. Cuenca. Junto aos escritos, os desenhos do artista plástico Rafael Coutinho (filho da quadrinista Laerte) foram impressos em uma folha inteira com um metro de comprimento. No total, nove pranchas foram confeccionadas dessa forma e encadernadas, uma a uma, no miolo do livro.
Duas perguntas // Lucas Santtana
A relação que temos com a tecnologia hoje é opressiva? Esse excesso de conexão nos faz mal? Como você lida com isso?
Eu acho que cada vez mais é controladora, porque a dita web 3.0 vem com o discurso de que é customizada para você, mas, na verdade, é cada vez mais uma invasão de privacidade para te vender algo ou te espionar, nada mais que isso. O caso Snowden está aí, né? Não preciso dizer mais nada. Óbvio que tem muitas coisas boas nos celulares modernos, mas eles têm trazido dependência sim. Eu procuro cada vez mais estar em contato comigo mesmo, seja através da terapia, das cerimônias xamânicas, e também no dia a dia, me educando a ter esses momentos longe do celular ao longo do dia. Estar em contato consigo e com a natureza é o grande antídoto para tudo isso.
A arte é uma das formas de encontrar isso, de fazer essa pausa?
Com certeza, sempre foi e sempre será uma maneira de adentrar e vivenciar outros mundos, algo inclusive que desloca o tempo, porque pode ser novo para alguém mesmo tendo sido criado dois séculos atrás. A verdadeira arte sempre trouxe reflexão e, para isso, a ;pausa; é inevitável.
Modo avião
De Rafael Coutinho, Lucas Santtana e J. P. Cuenca. Lote 42, 88 páginas. Preço: R$ 42,90.
Modo avião
Lucas Santtana. Natura musical, 17 faixas. Preço médio: R$ 30.