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Marcia Tiburi lança em Brasília livro sobre o ridículo na política

Autora alerta para como o descrédito acabou por dar voz a figuras radicais

O ridículo político é um fenômeno que contaminou a política mundial, de forma geral, e a brasileira, em particular. Ao levar para o campo político uma bufonaria que deveria ser vista apenas como vergonha alheia, o ridículo político serve ao poder. O conceito formulado por Marcia Tiburi em Ridículo político ; Uma investigação sobre o risível, a manipulação da imagem e o esteticamente correto, que tem lançamento hoje na Fnac do Parkshopping, explica por que figuras como Jair Bolsonaro, Donald Trump e Berlusconi, em vez de serem encaradas com descrédito, ganharam as graças do povo e se tornaram dignas de votos e atenção.
Algumas das ideias desenvolvidas no livro já foram expostas em artigos publicados ao longo dos últimos anos, mas para compreender o conceito é preciso seguir a sequência dos capítulos. ;Mostro uma evolução da própria questão do ridículo político, que se transforma em cinismo político;, avisa a autora. Para ela, o descrédito na política leva o eleitor a aceitar e escolher pessoas que se sobressaem com discursos muitas vezes radicais, preconceituosos e distantes do que antes era considerado razoável.
Esse caminho acaba por transformar o campo das discussões políticas ; necessário e importante para a construção de uma sociedade ; como espaço apenas de manutenção do status quo e de favorecimento de vantagens pessoais. ;Uma coisa importante é não confundir o ridículo político com o político ridículo;, explica a autora. ;Há personagens que se encaixam nessa categoria, mas minha questão foi analisar uma mutação na nossa cultura política. O ridículo político destrói a política, ele é, inclusive, uma estratégia de uma certa ideologia do poder, ele é uma tecnologia do poder que visa destruir simbolicamente a política. Minha questão é entender como toda a política entrou nesse devir ridículo.;
A análise da autora começa com a política em si, mas se estende por todas as esferas da sociedade. Ridículo político fala também de misoginia, machismo, desigualdade, cultura e da relação entre gosto e poder. Da recatada Marcela Temer ao ;ipanemismo; que delimita territórios e classes no Rio de Janeiro, do consumismo ao corpo como mercadoria, do vazio do pensamento à valorização das aparências em detrimento da essência, o livro propõe uma reflexão muito pertinente para a interpretação da sociedade contemporânea.
Professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie, na qual desenvolve a linha de pesquisa linguagens e tecnologias, e autora de 24 livros, entre eles de Como conversar com um fascista e do romance Magnólia, Marcia procura entender como o ridículo se instalou na política para deturpá-la num momento em que se vive uma espetacularização desse campo. Abaixo, a escritora e filósofa fala sobre o conceito e como o ridículo político afeta a sociedade contemporânea.



Ridículo político ; Uma investigação sobre o risível, a manipulação da imagem e o esteticamente correto
De Marcia Tiburi. Record, 238 páginas. R$ 39,90
Lançamento hoje, às 19h30, na Fnac (Parkshopping)


O que é o ridículo político?
O ridículo político é uma categoria de análise, um conceito que nos ajuda a interpretar a cultura política. Desenvolvi esse conceito a partir da percepção de que havia muitos atores nas cenas políticas que, em vez de se perderem, de se desabonarem e se tornarem desempoderados por serem bizarros, fazerem muito papelão ou serem atores de situações constrangedoras, se capitalizavam. Então a pergunta que norteou o livro é uma pergunta de todos nós hoje em dia: como é possível que certas figuras que nos causam vergonha, sobretudo vergonha alheia, sejam capazes de ascender politicamente com tanta veemência, com tanto espaço. Como é possível que tudo aquilo que antes era abjeto na política, o discurso preconceituoso, o discurso assassino, o discurso ignorante, tenha se tornado agora um valor?


Como isso aconteceu?
A gente precisa pensar quais são as condições de exercibilidade da política que levaram a esse cenário do ridículo. O ridículo cresce, na minha hipótese, enquanto a ironia decresce. As condições de possibilidade de desmantelamento da política implicam uma desinteligência. Vivemos uma cultura em que a ironia desaparece justamente porque ela é um sinal de inteligência. Numa cultura irônica, as pessoas estão sempre desconfiadas umas das outras, pensando nos diversos sentidos do que está sendo dito. Na cultura do ridículo, esses sentidos possíveis desaparecem. Estamos quase vivendo sem interpretação. A gente recebe e vive as mensagens no sentido literal. Por isso essa cultura do clichê, do pensamento pronto, que é aquele pensamento que pode ser copiado e colado, em que as pessoas podem simplesmente aderir a uma ideia, ou a um conceito, ou a uma ação sem que haja uma reflexão maior sobre aquilo que se leu, que se ouviu, que se percebeu.


Falta ironia?
A ironia é um método filosófico, faz parte de um processo de reflexão. Quando a gente entra num diálogo, o elemento irônico sempre aparece. A ironia não é tirar um sarro do outro, nem debochar do outro: a ironia significa a capacidade de dizer alguma coisa que faça o outro pensar e isso envolve criatividade. E criatividade envolve sempre inteligência. Mas vivemos numa época desinteligente e isso criou uma inversão curiosa, uma espécie de mutação na ordem da inteligência. Hoje existe um culto da ignorância e a ignorância se transformou num populismo ignorante. Quanto mais asneiras alguém diz em público, mais capitalizado socialmente ele fica. Isso para indivíduos e grupos inteiros.


É uma questão de educação? Ou não é só isso?
Inteligência é uma categoria estética, ética e cognitiva. A inteligência, inclusive, é uma categoria política. Quando falo de ética falo da produção, de uma subjetividade. Quando falo de política falo da produção de uma coletividade. Não podemos considerar a inteligência como um dado natural e não podemos considerar a burrice como um dado natural. São produções culturais, há uma produção cultural da inteligência e uma produção cultural da ignorância. Hoje em dia no contexto capitalista neoliberal, é mais interessante para as corporações e para os donos do grande capital produzir desinteligência. E a educação, que é o meio para a produção de inteligência, deve ser controlada nesse contexto do capitalismo neoliberal. Não é saudável para o neoliberalismo que as pessoas sejam questionadoras.


No livro, cada capítulo traz uma explicação para como chegamos ao ponto de o abjeto se tornar um valor. Mas haveria um termo para resumir o porquê de termos chegado a esse ponto?
A meu ver, há um processo de desmontagem programado da política, ou seja, um processo de desvalorização, de depreciação, de degeneração da política. A ideia de política deve pegar mal entre as pessoas. Há toda uma discursividade, todo um universo imaginário e simbólico construídos pelo capitalismo e pelo neoliberalismo para o desmantelamento da política. E aqui falo de política no sentido daquilo que interessa aos cidadãos, daquilo que se refere aos direitos dos cidadãos. O capitalismo e o neoliberalismo só sobreviverão se houver uma desmontagem desse desejo de política e, para que isso aconteça, é preciso transformar a política numa coisa abjeta. E o ridículo político transforma a política numa coisa abjeta, ao mesmo tempo que sustenta no poder aqueles que aceitam e se propõem a performatizar nesse contexto.

Como sair dessa equação?
A meu ver é importante que a gente aprenda a refletir sobre os aspectos históricos e culturais que antecedem a nossa condição individual. Não quero dizer com isso que nós sejamos simplesmente programados, que haja um determinismo que vem a definir o que somos ou podemos ser, mas não é possível achar ou considerar que aquilo que vivemos, somos, pensamos e desejamos não seja fruto de interferências externas. A gente consegue desmontar essa equação pensando muito, refletindo muito e percebendo como somos herdeiros de uma classe social, de uma história, de uma raça, de uma língua, de uma geografia, de uma geopolítica. Em outras palavras: quantos fatores, quantos elementos entram em cena para construir a narrativa dentro da qual nós somos inscritos como pessoas? O individualismo seria a versão de uma grande alienação. E nós teríamos que ultrapassar essa condição de seres alienados percebendo como estamos em pleno e completo nexo com o cognitivo, ético, moral, histórico com o contexto no qual vivemos.


"Não é nosso gosto que define o que chega até nós, mas o que chega até nós que define nosso gosto": como o gosto é reflexo ajuda a pensar a política?
O gosto pertence às classes, não há gosto que não seja relacionado a uma classe social e cultural. O gosto não é unânime e não é comum. E nós somos despreparados, por questões sociais históricas e por interesses mil, para não pensarmos nessa questão do gosto, que é uma questão estética. Se a gente aprende a ler bem o gosto, as aparências e a administração dessas aparências pelo gosto, se a gente aprende a ler a estética, a gente aprende muita coisa de ética e política.

Qual o reflexo do ridículo político na realidade brasileira?

Os brasileiros são conhecidos por serem um povo que ri muito, que inventa muita piada. Tem gente que diz que o Brasil é o país da piada pronta. Mas, de repente, a gente começa a perder a noção do que é sério e do que é risível. Uma das questões importantes para nós é entender por que os brasileiros não levam política a sério. Tiririca foi eleito deputado federal mais votado. Se elegeu fazendo palhaçada e usou isso de um jeito jocoso, debochado. Muita gente votou nele por brincadeira, por desforra, por deboche. Os cidadãos que fizeram isso, por mais que estivessem tentando dar uma resposta à precariedade da política, acabaram se contradizendo, sendo vítimas de seu próprio gesto porque na hora que elejo um parlamentar importante, não posso eleger essa pessoa para não fazer coisas importantes, estou elegendo uma pessoa para um cargo sério, não posso fazer isso de brincadeira. Se não levamos política a sério acabamos elegendo pessoas que não vão trabalhar seriamente com política e que vão apenas se favorecer pessoalmente.

Você vê alguma melhora nesse cenário na próxima década?
Se não incrementarmos a reflexão sobre política, se não conseguirmos reavivar a discussão, o debate numa direção dialógica, ética, respeitosa, capaz de contemplar a singularidade, de levar em conta a alteridade em termos de política, se a gente não voltar com a ética para dentro da política, tendo em vista que ética é justamente a autoconstrução do sujeito dentro desse processo, talvez a gente acabe indo para os piores lugares. O poder faz um esforço de se manter no seu lugar a qualquer custo. E o poder descobriu, há muito tempo, que há um custo que ele paga e que é muito barato. É alto para a democracia e para a cidadania, mas é barato para o poder, e esse ridículo político é o custo barato do poder. Tão barato que ele viveu essa mutação astuciosa. Hoje vale mais, para um político, ser ou parecer ou se fazer performatizar como um ignorante, um fundamentalista, como uma figura que diz preconceitos ou faz um discurso violento, porque assim terá mais chance de se eleger do que se praticar um esclarecimento da população e o respeito em relação a seus adversários políticos. Se não conseguirmos frear esse processo de espetacularização da política, se não fizermos uma reforma pensando em outra política, se não pensarmos na entrada dos diversos agentes políticos existentes hoje e que estão nos diversos contextos de ativismo, nos grupos, nos movimentos, aí não sei o que sobrará de nós.