Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Festival de cinema, a partir de hoje, celebra diretoras negras em Brasília

Mostra no Teatro da Caixa, destaca o vigor criativo de realizadoras negras

Uma gravidez interrompida, aos 14 anos de idade, por se tratar de algo indesejado, e uma simples ida ao supermercado, tornada polêmica, por causa do preconceito em torno das protagonistas das compras (uma trans e outra, travesti). Os temas dos filmes descritos, A boneca e o silêncio (2015) e Assim (2013), ganham uma abordagem peculiar, por causa da origem de suas criadoras ; Carol Rodrigues e Keila Serruya, ambas nomes de ponta na mostra Diretoras Negras no Cinema Brasileiro. A inserção das realizadoras remove uma herança, outrora desanimadora, demarcada por observações do Grupo de Estudo Multidisciplinar de Ação Afirmativo (Uerj): entre 2002 e 2014, a pesquisa Raça e Gênero no Cinema Brasileiro apontou que, naquele período, nenhuma realizadora negra havia despontado entre as fitas de grande alcance, em termos de bilheteria nacional.
Para além do encadeamento de 90 sessões de cinema, a mostra montada para o Teatro da Caixa, com entrada franca, e estendida até 11 de julho, trará discussões desta lacuna de representação de diretoras mulheres, em debates como Perspectivas e Transformações: A Mulher Negra no Cinema (às 19h de hoje) e O Percurso das Diretoras Negras (sábado, às 19h). Incluída na mostra de cinema está a pioneira diretora negra Adélia Sampaio, revelação, nos anos de 1970, com formação prática na DiFilm, importante produtora de sucessos como Todas as mulheres do mundo (1967) e O padre e a moça (1966).

Filha de empregada doméstica, Adélia teve trajetória associada ao descaso da preservação cultural no país: ela teve os negativos dos curtas-metragens extraviados pela mantenedora Cinemateca do MAM. No longa Amor maldito (com sessão na sexta-feira), a diretora extrapolou a proposta de apregoar um orgulho étnico, corajosamente, tratando de romance lésbico mantido entre as personagens, uma executiva e uma antiga miss de concurso de beleza.

A noção inclusiva se estende a aspectos espaciais, em alguns títulos selecionados para a mostra no Teatro da Caixa. Exemplo disso é A rua ; O corpo urbano, assinado por Keila Serruya, e que mostra manifestações de hip- hop, num ciclo de cidades do Amazonas. A mesma vertente de atitude e de cultura transparece no documentário As minas do rap (2015). Já o média-metragem Leva (2011) examina a aplicação de racionalidade e do espírito de mobilização, no caso de uma ocupação feita no edifício Mauá, que revela a luta por moradia, na nevrálgica São Paulo.

Algo distanciadas de problemáticas mais densas, fitas criadas por Viviane Ferreira como Mumbi 7 cenas pós Burkina e O dia de Jerusa estão incorporadas na programação. No primeiro filme, a cineasta retoma a inspiração, a partir do rememorar de parte da cinematografia brasileira. O dia de Jerusa, que tem no elenco a atriz Léa Garcia, por sua vez, é ambientado no bairro do Bexiga, trazendo uma situação rica para o cotidiano regular de uma moça que realiza pesquisa sobre sabão em pó. Numa das moradias visitadas, ela impulsiona uma idosa a compartilhar uma felicidade resgatada no tempo.

Pioneirismo
Tratamento de assuntos contemporâneos se fundem a aspectos tradicionais, diante da diversidade proposta pela mostra Diretoras Negras no Cinema Brasileiro. No curta de Sabrina Fidalgo Cinema mudo (2012), pesa a limitação da protagonista Giulietta, isolada, na vivência restrita ao uso de aparatos tecnológicos. No caso do curta de Lilian Solá Santiago Eu tenho a palavra (2010), a aproximação com o tema da expressão pessoal se dá no passado: o filme mostra dialetos usados para que antigos escravos pudessem falar, de um modo mais libertário, sem cerceamentos.

No campo da construção/percepção visual, dois títulos chamam a atenção: Lápis de cor, da carioca Larissa Fulana de Tal (nome artístico), detido num sorrateiro racismo que encontra espaço para se infiltrar no universo infantil, prejudicando a autoestima; e Cores e botas (2010), de Juliana Vicente, que especula em torno da ausência de figuras negras em programas de tevê dedicados a crianças.

O diálogo com as manifestações culturais também é ressaltado na mostra que tem curadoria de Kênia Freitas e Paulo Ricardo de Almeida. A representatividade na sétima arte deu mote para a diretora Danddara, responsável pelo curta Cinema de preto (2004), que esclarece parte do percurso do multiartista Abdias Nascimento. Igualmente múltiplo, Heitor dos Prazeres, reconhecido como um dos fundadores da Portela e pela capacidade de pintar, está em Heitor, carioca dos prazeres (2013), filme de Tatyana dos Prazeres. No terreno da dança, dois filmes podem ser ressaltados: Balé de pé no chão, que revisita a trajetória de Mercedes Baptista, referência da dança afro-brasileira, hábil em mesclar balé clássico às coreografias folclóricas e Rainha, que apresenta Rita, uma candidata à vaga de escola de samba de uma comunidade.

Diretoras Negras no Cinema Brasileiro
Na Caixa Cultural Brasília (SBS, Qd. 4). De hoje a 11 de julho, exceto segunda-feira. Hoje, sessões às 14h, 16h e 17h. Às 19h, debate. Entrada franca.

Duas perguntas / Kênia Freitas, curadora

O que explica a presença de tantas diretoras brasiliense nos debates do evento?
Quisemos privilegiar a participação de diretoras negras que moram ou nasceram em Brasília, para que as conversas não fiquem no plano abstrato. Brasília e as discussões políticas estão vinculadas, não só no cenário institucional, mas também pelas organizações e pelos movimentos sociais. Isso não é diferente para o movimento negro. Outro fator que distingue a capital é o fato de a UnB ter sido uma das primeiras universidades a adotar ações afirmativas para pessoas negras e a produção atual das diretoras negras estar muito vinculada a essa formação mais institucionalizada.

A Ancine (Agência Nacional do Cinema) atentou para uma linha específica criada para atender a realizadoras negras. É efetiva esta ação?
Desde 2015, a Ancine tem feitos debates e ações para aumentar a paridade de realizadoras negras. Isso é urgente, no entanto, muito ainda precisa ser feito para alterar absurda ausência lacuna. Se por meio de financiamentos, mais realizadoras negras estão produzindo, é hora de questionar onde esses filmes circulam. Como é possível que estejamos exibindo uma mostra com tantos filmes incríveis que muitas vezes tiveram pouca ou nenhuma circulação pelos festivais?