Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Artistas e designers da capital celebram o mestre Athos Bulcão

Morto em 2008, o centenário de Athos Bulcão será celebrado no ano que vem


Se o Rio de Janeiro tem as curvas do calçadão de Copacabana ; reproduzidas em peças que vão de joias a cangas de praia ;, Brasília tem a geometria de Athos Bulcão. Os brasilienses se apropriaram das formas e cores do artista carioca como se fossem símbolos de sua própria identidade. E, ao longo do tempo, enquanto Athos se tornava brasiliense, condição inevitável já que viveu cinco de suas nove décadas de vida na capital, suas criações se incorporavam ao concreto da cidade como se fossem uma pele cheia de graça.

Athos morreu em julho de 2008, logo depois de completar 90 anos. Vivo fosse, faria hoje 99 anos. E para preparar o centenário, a Fundathos já começou a celebrar. Hoje, durante uma série de atividades que inclui exposição e oficinas, a instituição lança um catálogo com 283 obras do artista. Catalogadas e fotografadas por Diego Bressani, as obras pertencem ao acervo da Fundathos e chegaram até lá por meio de doações do próprio artista e de aquisições realizadas desde sua criação, em 1992.

A análise crítica da coleção ficou por conta de Fernando Cochiaralle e Marília Panitz, que assinam os textos da publicação, além de Valéria Cabral, secretária-executiva da Fundathos. A intenção é fazer, no futuro, um catálogo raisonné do artista e, para isso, a instituição começou um inventário destinado a saber onde estão e quais são as obras de Athos espalhadas por aí. ;Muita gente tem obra dele. A gente não tem ideia da quantidade de coisas que ele produziu antes. E artista tem essa coisa de dar e trocar obras, né?;, avalia Valéria Cabral.

Os painéis de azulejos com motivos geométricos e as esculturas, todos dispostos em prédios privados e públicos de Brasília, transformaram a figura de Athos Bulcão em uma espécie de símbolo da ligação afetiva entre a cidade e seus habitantes. ;Nenhum artista no mundo tem tantas obras em convivência com seu povo. São mais de 200 que já fazem parte do imaginário, dos candangos aos novos brasilienses;, lembra o artista Bené Fonteles, que foi muito amigo de Athos. A prova de como a plástica do artista contaminou os brasilienses está espalhada por aí, em peças de design, roupa, joias, acessórios e todo tipo de material gráfico, tudo produzido na cidade por artistas e profissionais que se deixam encantar pelo universo colorido desse carioca outrora apaixonado pelo carnaval.

Daniel Moreira tem 29 anos, é filho de arquiteta e se formou em engenharia civil, mas foi na produção de roupas que encontrou o caminho profissional. Há dois anos, ele e Enozor Júnior fundaram a Dane-se, marca de roupas básicas produzidas no Distrito Federal. No ano passado, ele criou, em parceria com a Fundathos, uma série de camisetas cujos bolsos traziam motivos dos azulejos de Athos. As 300 unidades da peça deveriam durar dois meses, mas acabaram em 20 dias.

Este ano, foram mais 800 camisetas, dessa vez inteiramente estampadas com desenhos como a pomba da igrejinha da 308 Sul e dos azulejos do Parque da Cidade. A coleção está quase esgotada. ;É uma coisa porque essa ligação afetiva vai passando de geração para geração;, repara o designer. ;Você fala em igrejinha e causa um frisson e isso trouxe um público mais envolvido com a cidade sentimentalmente, um público que nem era o nosso. É uma ligação forte porque ele nem de Brasília era, mas é mais conhecido aqui doque no Rio.; Em comemoração antecipada do centenário, a Dane-se produziu um vestido inteiramente com estampas de Athos Bulcão. Serão apenas 12 peças, vendidas na loja da Fundathos.

Pessoa criativa


Para Danilo Vale, um brasiliense de 32 anos formado em desenho industrial na Universidade de Brasília (UnB), a relação de afeto com Athos Bulcão tem explicação na constância com a qual os habitantes da capital se deparam com as obras do artista. ;A cidade, por si só, já influencia a vida de qualquer pessoa criativa. E quando vejo os azulejos, eles me remetem a momentos;, explica. ;Athos trouxe cor para os prédios e mais afeto para o modernismo da cidade.;

Em 2015, Vale desenvolveu uma série de cadeiras com encostos inspirados em azulejos dos painéis do artista. Estão lá os desenhos estampados em locais como a Torre de TV, o Parque da Cidade, o Instituto Rio Branco, os hospitais da Rede Sarah e a Conferência Nacional dos Bispos de Brasília (CNBB). As cadeiras estão entre as peças criadas por Danilo Vale. A designer Kátia Moraes também encontrou na geometria de Athos a forma perfeita para fazer peças de mobiliário.

A Mesa Athos, inspirada em painel de escultura da Câmara dos Deputados, já esteve na Casa Cor e na Feira Internacional do Móvel de Milão. Gaúcha, Kátia não conhecia o artista até se mudar para Brasília, em 2003. ;Logo no aeroporto, dei de cara com Athos Bulcão;, conta, ao lembrar do painel em uma das salas de embarque e desembarque. ;Minha paixão começou assim. Fui conhecendo a cidade e me deparando com a obra dele, sempre dava presentes relacionados à obra até que conheci o painel da câmara.;

Carnaval


Todas as peças e roupas produzidas a partir de motivos do artista precisam de autorização da Fundathos, que também ganha porcentagem sobre as vendas. Mas há dezenas de apropriações que se dão de forma puramente afetiva e passam ao largo do comercial. Foi assim com a poeta Marina Mara, que fundou, em 2016, o bloco de carnaval Rejunta meu Bulcão. ;Ele está para Brasília como a xilo está para o nordestino;, diz Marina. ;São locais que a gente está com vento no rosto e vendo a obra dele. E ele amava o carnaval e essas manifestações populares.; De fato, o carnaval é tema de muitos desenhos e pinturas do artista, que cultivava especial interesse no tema.



O afeto do brasiliense por tudo que diz respeito a Athos ficou evidente para o curador e crítico de arte Marcus Lontra quando ele viu filas de pessoas se formarem diante de um ponto de selfie idealizado especialmente para uma exposição do artista na Caixa Cultural do Rio de Janeiro. A maior parte das pessoas tinha alguma ligação com a cidade. ;Essa questão da iconografia é muito forte em Brasília. E acho que o Athos fez isso. O trabalho dele tem uma relação com a azulejaria e a tradição barroca ao mesmo tempo que tem uma forma e um espírito modernos. Ele se identificou muito com Brasília porque é um artista tradicional e inovador ao mesmo tempo, que é um pouco o espírito da cidade. Isso cria um interesse;, diz.

Além disso, a própria personalidade do artista favorecia o afeto. Athos foi professor no Instituto de Artes da UnB, formou muita gente e adorava receber alunos em casa para conversar. Assim como sua obra, sempre exposta aos olhos do público, ele circulava pela cidade. ;Ele foi professor e professores são importantes na vida da gente;, constata Valéria Cabral. ;E ele sempre foi muito receptivo. Isso fez dele uma pessoa muito querida e amada na cidade.;