Enquanto escrevia o roteiro do longa Mulher do pai, ambientado no Rio Grande do Sul e muito afinado com a atual mobilização feminista, a premiada diretora Cristiane Oliveira lia Demian, escrito por Hermann Hesse. ;A complexidade de sentimentos ao longo do amadurecimento do jovem protagonista do livro talvez tenha me influenciado;, comenta a cineasta gaúcha que, aos 37 anos, lança o primeiro longa-metragem, apoiada por uma rede de profissionais mulheres nos bastidores da fita.
;Não acredito que a identidade de gênero determine o talento de um indivíduo e a escolha de mulheres para posições-chave na equipe de Mulher do pai foi apenas uma reunião de talentos com os quais eu queria trabalhar. No entanto, o talento precisa de espaço para se expressar e fico feliz que muitas mulheres tenham encontrado uma oportunidade no filme;, observa a diretora que, com três curtas e um longa, faturou mais de 10 prêmios.
O primeiro longa de Cristiane Oliveira, valorizado pela crítica, quando participou da Mostra de São Paulo, estabelece duas pontes: a primeira entre Brasil e Uruguai (houve coprodução, possibilitada pelo programa Ibermedia e Edital da Ancine) e outra entre personagens ; uma moça em processo de descobertas da vida e na relação com o pai, limitado pela cegueira (e pela morte da mãe).
Como você percebe o lugar da mulher na sociedade contemporânea?
A igualdade de gênero como algo institucionalizado é recente na nossa história e ainda não se aplica na prática em muitos espaços. Estamos vivendo no Brasil esse momento de transição, de luta contra o conservadorismo. Acredito que a discussão sobre identidade de gênero deva ser ampliada para que não se veja mais a humanidade dividida em dois grupos, pois entre ser homem e ser mulher há muitas outras cores.
Há particularidade no fato de ser mulher e emergir num universo como o de Nalu, a protagonista de Mulher do pai?
A base da cultura do Rio Grande do Sul foi a criação de gado e não há espaço para a mulher nela, o que coloca em cheque a questão da autonomia da mulher. O filme aborda essas relações de dependência e autonomia. Como se vê na protagonista, que só imaginava deixar a casa do pai se fosse por outro homem. Na produção do filme, empregamos mais de 40 pessoas da Vila de São Sebastião, entre homens e mulheres, sendo que muitas dessas mulheres tiveram aí seu primeiro trabalho remunerado. Porém, o personagem do pai também está numa condição de dependência da filha no início do filme, cuja trajetória vai tecendo a confusão de papéis que há entre eles.
De onde brotou a ideia para a realização do filme?
O interesse em trabalhar sobre uma relação pai-filha se uniu a algo que percebi durante a pesquisa para meu primeiro curta: a angústia de perder a memória visual. O curta (Messalina, 2004) tratava de uma personagem cega e me envolvi com deficientes visuais para criar o universo do filme. É comum esquecermos a imagem das coisas e nos inquietamos quando já não lembramos mais do rosto de alguém querido, por exemplo. Mas uma foto, um vídeo ou mesmo poder rever de fato nos faz rememorar e alivia essa falta. Uma pessoa que perde a visão não tem mais esse recurso. Foi aí que me perguntei: e se alguém lhe descrevesse tudo em detalhes, amenizaria essa angústia? A relação que um cego tem com quem descreve o mundo para ele é de uma confiança e proximidade tão grandes quanto uma filha gostaria de ter com um pai.
Há limites para exposição física, especialmente em se tratando de uma moça (a atriz Maria Galant) em cena?
A construção estética se dá em função da trama e da vontade de permitir ao espectador acompanhar a ;pulsação; adolescente nesse tempo do interior, que é mais dilatado. Por outro lado, tinha intenção de permitir ao público esse ;não ver;, situação comum ao personagem do pai (cego), e por isso trabalhamos muito o ;fora de quadro; na linguagem do filme.
Qual a perspectiva que a vida no interior do Sul traz, hoje em dia?
Torquato Severo (distrito em Dom Pedrito ; RS) é como muitos locais do Brasil que, com o fim dos trens de passageiros na década de 1950, entraram em decadência econômica. A dependência do carro e das estradas precárias impõe uma condição de isolamento que marca muito o dia a dia das pessoas. Porém, é um espaço em transição que está sendo transformado pela tecnologia e o filme mostra um pouco isso.
Em termos de cinema nacional, como percebe a relação do governo e o fluxo da cadeia produtiva do cinema?
Há muito em que se avançar ainda, mas a estruturação da Agência Nacional do Cinema e a criação do Fundo Setorial do Audiovisual, que é autossustentável via imposto pago pelos agentes da cadeia produtiva, foi certamente um grande avanço. Os editais públicos que distribuem os recursos para diversas áreas já têm um olhar para a diversidade em seu sistema de escolha de projetos. No entanto, o Brasil é muito grande e é necessário que os governos locais e empresários olhem para o fomento à cultura com algo necessário ao desenvolvimento de base do país.