Xinran Rue ainda se choca com algumas coisas. Muitas, na verdade. Apesar de ter passado boa parte da vida ouvindo as histórias mais tristes da China, de ter escrito sobre a condição das mulheres, das crianças, dos mais velhos e de uma porção de vítimas de guerras e opressão, a autora de As boas mulheres da China e As filhas sem nome ainda é capaz de se surpreender com histórias que ainda não foram contadas. A mais recente delas trata da primeira geração de crianças nascidas após a política do filho único. Introduzida na China em 1979, a medida evitou o nascimento de 400 milhões de pessoas desde que foi implantada. É o lado que a jornalista e radialista, radicada na Inglaterra há 20 anos, considera um ;presente; para a humanidade. Mas a política do filho único também tem outras facetas e uma delas foi ter modificado valores considerados fundamentais para a sociedade chinesa ao dar origem a uma geração de cidadãos criados como pequenos imperadores. Compre-me o céu ; A incrível verdade sobre as gerações de filhos únicos da China reúne 10 histórias de jovens adultos nascidos entre 1979 e 1984 e faz uma radiografia do efeito dessa política na sociedade chinesa contemporânea.
Compre-me o céu ; A incrível verdade sobre as gerações de filhos únicos da China
De Xinran. Tradução: Caroline Chang. Companhia das Letras
A China nunca se abriu realmente para o mundo, e isso em muitos níveis. No nível internacional, porque desde o século 19 a até o último imperador, a China nunca realmente se assentou: houve guerra civil, Segunda Guerra, guerra política, Revolução Cultural. Isso até o final do anos 1970. E durante essa parte da história, o Ocidente manteve distância. Por causa da política, nós realmente fechamos a porta. Além disso, os estudos sobre a China hoje no Ocidente são muito limitados. E se você não tem esse tipo de informação, de educação e de comunicação, então não há muito conhecimento sobre a China. E claro, a China tem a censura e a propaganda. Para o Ocidente, nossa história é preto no branco, mas você não consegue realmente entender o que a China é se pensar assim. O Ocidente não entende a China e não é apenas uma questão do idioma: há uma arrogância colonial, especialmente na Inglaterra e na França. E nós não sabemos como lidar nem como comunicar com o Ocidente.
Eles podem tornar a China rica? Sim. Mas a política do filho único tem dois lados. Um lado é o fato de ser um presente. Durante a aplicação dessa política, durante 36 anos, a China evitou que a população (da Terra) aumentasse em 400 milhões de pessoas. Isso é um presente para o mundo. O outro é que essa política deu à China a oportunidade de resolver um desequilíbrio entre a população e a comida. Também é preciso dizer que, por causa dessa política, a vida das meninas realmente melhorou. Elas passaram a ter a chance de conseguir um emprego e uma educação básica que permitem que tenham uma voz. Antes, não tinham.
Sim, um deles é que essa política foi aplicada muito rapidamente e sem o suporte do governo, sem conhecimento social nem educação básica educacional. Quando começou, as famílias entraram em pânico. E essa política realmente quebrou os valores tradicionais de família na China. Essas crianças também estão lutando. Suas vidas, desde muito cedo, não têm muita noção das convenções sociais. Nós aprendemos como nos comportar socialmente, como compartilhar com nossos irmãos e irmãs. E também temos tradições como respeitar os mais velhos, respeitar a educação, os pais. Mas por causa da política, isso foi quebrado e a sociedade ficou muito frágil. As pessoas não sabem quem está certo ou errado, elas só acreditam no seu filho único.
Em outros países, se você perguntar aos jovens sem o que eles não podem viver eles vão dizer família, amigos. Só os chineses vão dizer ;sem internet e celular, não posso viver;. Eles não incluem a família. Eles têm tudo. Mas vivem em uma ilha. Todos os anos fazemos treinamentos em muitos países com jovens chineses para que possam encontrar seu verdadeiro valor. Eles acham que têm tudo, mas na verdade não têm nada. Isso é uma coisa. A outra é que eles realmente vivem uma luta no que diz respeito a como lidar com o casamento. Durante muito tempo, eles foram o centro da sociedade e de repente, isso é quebrado e o centro se desloca. Isso piora quando eles têm um bebê: eles se sentem lesados porque descobrem que toda a geração mais velha passa a prestar atenção no bebê e não neles. A maioria dos jovens pais que vêm da política do filho único não quer filhos, eles odeiam a ideia de filhos. Esse é um dos maiores problemas da China no momento. Nas cidades grandes, os jovens instruídos não querem ter filhos.
Já me fizeram essa pergunta muitas vezes, mas nunca encontro a resposta. Na China, eu diria que sim porque quero que as mulheres tenham sua própria voz, seus próprios direitos, apoio especial para as mães. Mas no Ocidente, quando ouço feministas dizerem ;eu posso ser soldado, posso carregar tanto quanto um homem, não preciso de um homem; eu digo ;espere, eu não posso;. Não posso porque nossa natureza é completamente diferente e temos que aceitar isso. Discordo dos padrões ocidentais feministas que dizem que tudo deveria ser igual para os dois sexos. Acho que isso é injusto com as mulheres. E também discordo da China, onde tudo tem que seguir o homem.
Essa ideia chegou à China na nossa primeira Revolução Cultural, durante os 1950 até 1970. Durante esse período, as mulheres podiam escolher o sobrenome no casamento, tinham o direito de cortar o cabelo, podiam ir à escola. Mas depois, por causa da guerra civil, não tivemos realmente a chance de viver isso. Depois da Revolução Cultural de Mao, que é sempre visto como uma pessoa do mal mas fez algumas coisas boas, deu às mulheres os direitos de ;alcançar metade do céu; (expressão cunhada por Mao Tsé-Tung para explicar que homens e mulheres tinham direitos iguais). O problema é que, durante o dia, ficávamos com metade do céu, como os homens, mas quando voltávamos para casa, voltávamos às tradições. Muitas mulheres me disseram ;eu não quero me libertar porque isso significa que tenho que fazer o trabalho dobrado;. Feminismo é um movimento que aconteceu, na China, nos últimos 15 anos porque as gerações mais jovens, quando crescem, são forçadas a casar de maneira tradicional e muitas jovens chinesas independentes não querem seguir isso. Esse grupo de jovens, agora com seus 40 anos, são realmente as primeiras feministas da China.
O primeiro problema é nossa cultura. Nossa cultura escrita é muito ruim. A primeira coisa que os imperadores faziam quando chegavam ao poder era mudar a história, os arquivos. Como não temos uma religião nacional, o budismo é algo muito recente, então essa era a primeira coisa que faziam. Essa é nossa cultura política. E outro problema é as famílias: os mais jovens não tinham o direito de perguntar aos mais velhos como eles se conheceram, de onde vieram. Não tínhamos o direito. Antes do comunismo, tínhamos um livro de família com a história das gerações, era como uma árvore de família. No livro estava escrito quem casou com quem, onde. E havia um conselho local também com muitos registros. Tudo isso foi destruído na Revolução Cultural. A outra é que, durante anos, você nunca sabia que lado era o certo. E depois tivemos a censura. Se você ler um livro de história chinês dos últimos 100 anos, a Revolução Cultural ocupa apenas meia página. Então, quando as pessoas criticam os jovens chineses, quando falam que eles não têm ideia da própria história, sempre digo que têm que entender que eles não têm fonte de informação, não está nos livros e as famílias não falam. Agora os jovens chineses estão tentando ler a história da China pelo que foi publicado no Ocidente.
O primeiro foi publicado há dois meses e logo pararam de vender porque estava vendendo bem. Eles se assustaram. Meu livro é de não ficção e tento dar uma voz à história e às gerações que foram vítimas e silenciadas. Acredito que história não pertence apenas aos políticos ou aos vencedores. Mas na China isso é um tabu. E a censura na China é interessante. Se você publica algo errado, pode perder o emprego. As pessoas ficam assustadas porque não há clareza sobre o que se pode e o que não se pode fazer. Esse é o problema. Não temos um sistema legal independente. Melhorou muito nos últimos 40 anos, pelo menos as pessoas têm comida, um teto, emprego. Mas pagamos um preço enorme por isso.