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Diversão e Arte

Diretor de Clash, Mohamed Diab, fala sobre o longa que está nos cinemas

Apesar do sucesso do longa Clash, diretor egípcio não tem nada a celebrar, por sentir a cisão do país dele que acredita se estender para países como Brasil e Estados Unidos: 'Clash é uma metáfora para nosso acúmulo de perdas, e para a insistência em seguirmos a direção errada'


Uma lacuna irreparável na evolução democrática egípcia, alastrada e perpetuada por mais de seis anos de instabilidade e desmandos. No contexto: uma onda de protestos, na Praça Tahrir (Cairo), demoveu o ditador Hosni Mubarak e abriu espaço para controle e arbitrariedades do Exército daquele país. Na sequência, o presidente civil de princípios islamitas Mohamed Morsi foi afastado pelos militares, por meio de golpe, mas sem o apoio incondicional do povo que acompanhou a primeira ação bélica.

É no 2013 anterior às novas eleições, capazes de legitimarem a presidência do ex-ministro da Defesa (golpista) Abdel Fattah el-Sisi, que surge a trama de um dos mais impactantes títulos da cinematografia egípcia moderna: Clash, filme de Mohamed Diab que abriu, ano passado, a mostra Um Certo Olhar, nos Festival de Cannes. Em cartaz no Liberty Mall, a fita ; incendiária, em termos de ação e de contraposição e até afronta de ideologias ; encoraja até paralelos com as crises de poder de outras nações. Ao Correio, o diretor Mohamed Diab explica os bastidores da criação do longa. ;Durante a revolução tivemos o lançamento do meu longa Cairo 678 (sobre assédio sexual no Egito). Foi com o prestígio alcançado por ele é que cheguei a Clash;, observa.

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Entrevista com Mohamed Diab

Qual foi o seu posicionamento em meio a toda a crise e de onde veio a ideia do longa?

Eu e meu irmão tomamos parte do movimento. Por três anos, tivemos dedicação absoluta à causa, sem envolvimento com a feitura de filmes. Fomos colaboradores daquele movimento, contra a ditadura. Queríamos a prevalência da democracia. No começo do filme Clash, em cena, estamos representados pelos jornalistas, ou seja, pessoas que não se alinhavam com a Irmandade Muçulmana e muito menos com o regime. Gostei muito da ideia do meu irmão. Um ano antes das filmagens, começamos a construir a parafernália que possibilitou filmarmos de dentro do camburão no qual se travam os conflitos entre estratos da população. Tivemos ensaios por quase um ano. As filmagens de fora foram difíceis, pois a câmera estava sempre dentro do caminhão. As pessoas desavisadas poderiam vir a interferir nas filmagens, bem como os policiais poderiam vir a impedir a realização.

Como foram as filmagens e qual a repercussão do longa?

Filmamos no Cairo o que tornou tudo muito complicado. Em Cannes, a receptividade foi bastante positiva. Com a divisão estabelecida e as feridas dos protestos tão recentes e vívidas, no Egito, prevaleceu um lado muito focado na perspectiva do outro. Sempre me vinham com as mesmas questões Por que humanizei o outro lado? Isso, em todos os aspectos. Independente de quem quer que se tratasse, pairava crítica, nisso. A Irmandade taxou o filme como propaganda; o governo, idem. Os rebeldes igualmente não gostaram. Senti a obrigação de abordar todos os lados -- até mesmo por ter sido assim que a guerra civil se instalou. O primeiro passo para o movimento impunha a demonização do chamado outro lado. Para ilustrar, seria como um filme situado na Primeira Guerra, e que humanizasse alemães e britânicos. Nenhum lado sairia da sessão gostando do que viu. Para mim, seria fundamental que, em algum ponto da trama, os personagens parassem de brigar. É o tipo de medida que pode vir a salvar uma vida que seja.

Por que veio a opção do final ;em aberto;?
Foi um final idealizado por uma escolha. É um retrato do Egito que por sinal se estende aos nossos dias atuais: não sabemos do desfecho, de qual será o próximo capítulo da nossa história. No fim, você vê a luta contra o caos, contra o que seja misterioso. Ao final, todos perdem. É uma metáfora para nosso acúmulo de perdas, e para a insistência em seguirmos a direção errada.

Como você percebe sua atual realidade do Egito?
Estamos na mesma realidade de impasse representada no final do filme. Acho que persistimos numa direção equivocada. É uma medida que pode inviabilizar nossa existência enquanto país. Desconheço países que sobrevivam a este tipo de divisão absoluta. É, alias, uma realidade que se espalha por outros países, entre os quais Brasil, Estados Unidos, Israel, Turquia, Inglaterra -- todos os países que estão acalentando um povo seccionado.

Como lidou com a censura?
Você tem que ser esperto. É muito difícil, quase impossível, investir num tema político na conjuntura em que estamos. Enquanto filmava, apostava na possibilidade de o filme vir a ter a vitrine que efetivamente teve. Com a proteção alcançada com a imprensa e com a projeção em Cannes, o governo não pode deter nosso avanço, mas pode, sim, dificultar algumas coisas para nós. Houve retenção do filme, até os momentos finais, que precederam a exibição na França. Foi realmente muito difícil encontrar um produtor, para o filme, e que quisesse trabalhar em cima da realidade do Egito. Além do apoio do produtor, obtive muita força, com a ação da minha mulher. Sem a coprodução com a França, o longa nunca poderia ter sido feito.

Como foi a luta pela democracia?
Eu sempre optei pela liberdade. Foi um momento decisivo e de inacreditável mudança para o país: ninguém pretendia sobressair, num plano em se falava de uma troca abrupta de rumo para uma nação inteira. Estar e ser apenas um entre milhares só fortalecia o sentimento comum desejado. Durante a revolução, todos nos tornamos mais corajosos do que poderíamos imaginar. Acho que houve uma mudança de perspectivas capaz de afetar os limites derrubados para toda uma geração.