Raphael Montes não queria fazer um livro panfletário, mas queria levar o leitor a refletir sobre as implicações de comer carne. Vegetariano, o escritor carioca de 27 anos não é radical quanto à própria escolha e não gosta nem um pouco de julgamentos sobre o assunto. Ele não come carne, mas não vê problema em quem come. Da vontade de falar sobre o tema nasceu Jantar secreto, quarto romance de Montes, uma trama que também fala de um drama vivido de perto pelo autor: o desencanto da geração millennials diante das opções de carreira e estudos. ;O Brasil, que quando comecei a escrever o livro era o país do futuro, entrou numa queda louca política e econômica e aquela noção de que, se estudar, vira alguém na vida, foi se perdendo. Eu olhava meus amigos e via vários deles sem emprego, desesperados, formados em engenharia, medicina, mas sem esse futuro garantido. E decidi, então, também falar sobre isso;, conta Montes.
No romance, quatro amigos de uma cidade do interior do Paraná se mudam para o Rio de Janeiro para cursar faculdade. Quando terminam, esbarram no desemprego e numa dificuldade financeira que acabam por desviá-los para um caminho mórbido. Como forma de ganhar dinheiro, o quarteto começa a fazer jantares privados com carne humana. Os comensais pagam preços astronômicos e a iniciativa vira um negócio perigoso. O mundo do crime se torna inevitável e a trama de romance policial macabro se desenvolve a partir do drama entre escolher o caminho da penúria ou o do canibalismo, como se não houvesse alternativa.
O romance, segundo Montes, mudou muito ao longo do processo de escrita. ;Quando comecei a escrever queria muito falar do que nós comemos. Ou seja, por que nós comemos carne? O que nos dá o direito de comer carne? A ideia era refletir sobre esses assuntos, mas não num livro panfletário ou em defesa do vegetarianismo porque acho tudo isso particularmente muito chato, acho que a literatura não tem uma função didática. A literatura serve para suscitar discussões e não para dar respostas;, explica o autor.
Jantar secreto é, portanto, um livro sobre canibalismo mas também sobre o desencanto de uma geração. Montes não hesita em descrevê-lo como um livro geracional. ;Acho que o Jantar secreto, com muito orgulho, é um dos romances geracionais do momento que a gente vive no país;, acredita. O terror e a morbidez não são novidades na escrita de Montes. Em Dias perfeitos, ele escreveu sobre o amor obsessivo com um rapaz que sequestra uma moça pela qual é apaixonado e em O vilarejo, a maldade humana atinge o ápice em personagens marcados pela guerra. ;Eu gosto de tratar de temas difíceis e realmente acredito que, na literatura, não há limites;, avisa.
Trama policial
Canibalismo, por ser um tema difícil, atraiu o escritor. A trama de romance policial e a escrita rápida, na qual a entrega da narrativa é total e não há mistérios nas entrelinhas, levaram Montes a um patamar que muitos jovens autores cobiçam e nunca alcançam. Lançado em 2014, Dias perfeitos vinha na esteira do sucesso de Suicidas, o primeiro romance. Na época, o boca a boca já era tão grande que os direitos de publicação do livro foram adquiridos pela Companhia das Letras em um leilão com outras cinco editoras. Montes conseguiu que o escritor Scott Turow escrevesse um comentário para a capa do livro, uma frase na qual diz que o jovem autor vai redefinir a literatura policial brasileira e se projetar na cena mundial. Dias perfeitos foi traduzido em 14 países, o que rendeu à capa de Jantar secreto um comentário do The Guardian no qual o carioca é comparado a Quentin Tarantino. O autor acredita que o sucesso está no fato de suas narrativas não serem rebuscadas e de se interessar pela perversidade humana, assim como por contar boas histórias. O contato com o leitor também é importante para ele, por isso faz questão de manter o perfil Raphael Montes no Facebook, no qual consegue uma comunicação mais direta com os fãs. Ao lado, o autor fala sobre o porquê de sua escrita ter ganhado tanta projeção e como encara a literatura brasileira contemporânea.
Entrevista: Raphael Montes
Por que o canibalismo te pareceu a melhor maneira de falar sobre o que comemos?
Quando me dizem ;ah é um tema muito pesado; é justamente o que me interessa. Se você pegar todos os meus livros, em geral, trato de temas complicados e tento trazer (os temas) de forma palatável. E a questão do canibalismo entra de forma hiperbólica. Na medida em que o paladar tudo permite, o que justifica a gente comer carne de boi? Por que você come linguiça? Porque é gostoso. Então já que o paladar, o fato de ser gostoso, justifica que isso seja feito, me propus imaginar: ;e se a carne humana for a mais saborosa de todas?;. Eu acredito que é uma maneira de falar de alguns assuntos, mas não de maneira panfletária, e sim hiperbólica, divertida. Não é um livro que quem come carne se sente ofendido em ler.
Sua escrita é muito explícita e não há mistério, é tudo muito entregue. É uma opção?
Acho que a gente vive a era do íntimo. Não à toa você tem o youtube fazendo tanto sucesso, as pessoas hoje assistem ao youtube o tempo inteiro. Por que isso acontece? Acho que é porque a gente vive essa era do íntimo. Eu tendo a acreditar que, já que vou falar desse universo, não posso me acovardar e ter medo de entrar nesse universo. Já que criei esse imaginário em que jantares de carne humana acontecem no Rio de Janeiro, não posso tratar de maneira en passant um assunto desse. Eu tenho que mergulhar nele. Essa é um pouco minha sensação. E talvez um pouco por isso entro muito na história. Mas acho também que o Jantar secreto tem bastante vazios, coisas que não me proponho muito a explicar. Uma coisa que acho importante no Jantar Secreto é que ele é contado da visão dos quatro amigos que começam a fazer os jantares e são pessoas ordinárias. Ou seja, o leitor se posiciona ao lado dessas pessoas e entende que, aos poucos, eles vão seguindo um caminho que leva a uma situação de loucura tal que realmente não dá mais para concordar. Não me preocupo muito , por exemplo, em entrar na cabeça de quem frequenta os jantares. O que também gera uma abordagem diferente para o tema canibalismo. Não me interessa a visão do canibal. Eu realmente não vejo o Jantar Secreto como um livro sobre canibalismo. Eu vejo como um livro sobre uma geração desesperada e sem rumo.
E tem uma crítica social aí?
Ah, total. Até em termos físicos você tem os ricos devorando os pobres. Naturalmente, quando eles começam a fazer jantares, a carne que eles escolhem é de negros. Tem um momento da história que ele precisa escolher uma pessoa e aí passa um casal branco e eles deixam passar e depois passa um casal de negros ouvindo pagode e aí eles decidem pegar porque ;não vai fazer falta;. Isso é muito duro de se ler, mas acho que também é uma realidade.
Por que você acha que Dias perfeitos fez tanto sucesso? Havia um nicho na literatura?
Eu tenho a sensação de que, infelizmente, nós carecemos de contadores de história no Brasil. Por questões históricas e acadêmicas, o que no Brasil é considerada boa literatura é uma literatura rebuscada, com jogos de linguagem e que não necessariamente conta uma boa história. E isso vem mudando. Por anos escritores se preocupavam mais com a linguagem do que com a narrativa. Também não acho que tem que se preocupar com a narrativa mais do que com a linguagem. Mas o que percebi é que criou-se um muro mesmo. Você tem os autores de prêmios literários, que escrevem livros voltados para aquele mundinho do professor universitário, do escritor na crise dos 50 e com reflexões filosóficas sobre o futuro e o mundo. E você tem, no outro extremo, a literatura de gênero, considerada literatura menor e que, em muitos casos, são ruins porque só contam uma história.
E como você equilibra?
O que tentei é retomar a união dessas duas coisas. Eu tenho toda uma preocupação com linguagem, a maneira como contar. Dá para perceber lendo meus livros, eu espero, que me preocupo com a forma e a linguagem. Mas não é só isso, tenho também uma história que quero contar. E também não quero só contar uma história, também me preocupo em discutir temas que me interessam. Não são livros vazios, que você termina e diz ;me diverti; e vai para o próximo. Pelo menos é o que eu espero. Espero que isso suscite reflexões nas pessoas. Eu acho que tem essa busca por esse equilíbrio, o fazer das pazes entre a alta literatura e a literatura de gênero.
Você escreveu roteiro para a televisão (Supermax) e está adaptando Vilarejo. Sua escrita, de certa forma, dialoga com o audiovisual?
Acho que não. Até para reescrever roteiro estou tendo que reaprender a escrever de outra maneira. A verdade é que escrever roteiro e escrever literatura são coisas absolutamente distintas. A grande dificuldade é aprender a ligar e desligar as chaves conforme o que estou escrevendo no momento. Algumas pessoas dizem que meus livros são muito visuais. Todos os meus livros já foram adaptados para o cinema e, de todos eles, eu particip razoavelmente da produção. E participando vejo como se revela a dificuldade de adaptar meus livros. Meus livros parecem fáceis de adaptar justamente porque têm muitas cenas visuais, mas não são.
Você é muito ativo na Internet. Acha que a tecnologia facilitou a publicação de autores desconhecidos?
Como tudo na vida, tem o lado bom e o ruim. A internet veio democratizar a facilidade de publicação. Ou seja, você escreve, posta numa plataforma e tem seu trabalho lido. Isso é muito bom porque faz surgir pessoas com talento e que não tiveram a chance. Mas ao mesmo tempo é inevitável que haja uma queda na qualidade. A figura do editor, da editora é importante. A verdade é que é bom que tenha muita gente publicando na internet, mas também essas pessoas que são boas quase somem no mar de textos muito ruins que também são publicados. É inevitável.
Jantar secreto
De Raphael Montes. Companhia das Letras, 360 páginas. R$ 31,92