Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Rappers do DF apostam nos mas variados estilos para compor letras e música

A diversidade de estilos é a marca do rap nascido nas cidades do DF

 

 

Entre os pilares que formam a cultura hip-hop está a musicalidade do rap em seus mais diversos estilos. O som criado nas ruas tem entre suas características básicas a constante experimentação, mistura e criação de novos ritmos. Ao longo dos anos, o Distrito Federal se transformou em um dos maiores polos do gênero no país e a antiga geração de rappers, músicos, dançarinos e grafiteiros abriu espaço para que cada vez mais novos artistas pudessem trabalhar fazendo seu próprio som. O hip-hop, criado durante a década de 1970, transforma-se assim em um estilo de vida, tornando possível a afirmação de uma identidade cultural que foi diminuída ou menosprezada como expressão artística.

Afrika Bambaataa, reconhecido como um dos criadores  do movimento que nasceu nas ruas e se espalhou mundialmente, estabeleceu quatro pilares essenciais na cultura hip hop: o rap, o DJing, a breakdance e a escrita do grafite. Criada entre as esquinas do Bronx, a música era originalmente feita com a parceria entre as letras cantadas pelos MCs e o ritmo adicionado pelos Djs. O movimento que faz arte como forma de protesto social tem no Distrito Federal Cláudio Raffaelo Santoro, conhecido como DJ Raffa, um de seus representantes mais antigos, tendo completado 35 anos de carreira na música. “Comecei em 1982, dançando nas ruas como b-boy e já produzi vários artistas ao longo desses anos. Hoje, o DF é o segundo maior polo de hip-hop do Brasil e tenho orgulho de ter sido um dos pioneiros e um dos precursores de tudo isso”, declara.

 

 

 

Mostrando que o gênero se especializa em promover a mistura de estilos, Raffa expande sua criação por vertentes diversas. O DJ trabalha como produtor musical e com a criação de um ponto de cultura, onde busca trabalhar a transformação social através da arte para jovens em situação de vulnerabilidade social. Para ele, um bom produtor musical é aquele que coloca sua cara no trabalho sem tirar a autenticidade do artista que está produzindo.“A cena no DF é muito forte. Antes, tínhamos espaço apenas na periferia, mas nos últimos 10 anos, vários festivais vieram para o centro da capital, dando mais visibilidade aos artistas. Esse processo foi importante e muito positivo para o crescimento da cultura hip-hop”.

Outro representante das primeiras gerações do movimento cultural do DF é Marcos Vinicios Moraes, mais conhecido como Japão, que acumula 28 anos de carreira na cidade. Seu trabalho principal é com o grupo Viela17, que completa 17 anos em 2017. O rapper utiliza sua experiência para realizar trabalhos sociais e acredita que o rap é o maior canal de comunicação das comunidades. “O rap é um código periférico onde se conhece uma realidade nua e crua e em vários momentos ele pode indicar saídas e soluções. É uma arma para a denúncia, elevação da autoestima e reafirmação do poder periférico, protagonizando histórias verdadeiras e semelhantes a que muitos vivem em seu espaço de convivência”, declara.

Em suas músicas, Japão opta por expressar amores, guerrilhas e mensagens de esperança, exaltando a tentativa de que os assuntos relacionados à periferia não caiam em esquecimento. “Minha vida foi transformada pelo hip-hop. O rap me deu liberdade de dizer o que penso e acredito, me fez protagonista de uma história onde a maioria dos atores morrem num final trágico, permanecem à margem da sociedade ou parasitem numa omissão eterna”. Sua principal fonte de inspiração é a cidade de Ceilândia e seus habitantes.  Para o músico, o local será sempre uma fonte inesgotável para a criação artística. O trabalho é inspirado nas ruas, becos, favelas e vielas mundo afora. Desde o início de sua carreira, muitas coisas mudaram e Japão conta que antigamente era a grande dificuldade para levar as músicas para outros cantos do país.

Mistura de ritmos


Rapadura Xique Chico conheceu o hip-hop por meio do break, quando chegou do Ceará para Planaltina, em 1997. Com uma infância regada à cultura nordestina, repente e cordel, o cearense se encantou pelo rap no DF e criou uma inusitada e certeira mistura de ritmos. “É daí que surge a mistura que faço atualmente, unindo o rap ao imaginário nordestino. Eu crio a qualquer momento, a inspiração caminha lado a lado com as minhas lutas diárias, a música forçada não acontece e tudo flui naturalmente”, destaca. O rapper lembra que a ausência de incentivo cultural pelo governo torna mais difícil o trabalho criativo e, ao mesmo tempo, cria espaços para iniciativas autorais de qualidade. “O rap no DF ainda é politizado e consciente, continuemos a luta”. O artista lembra que atualmente há muitos grupos profissionais fazendo um trabalho de qualidade no DF, como Vei Oeste, Tribo da Periferia, DNA e Movni.

 

 

 

Com o som inovador e canções que mostram a grande mistura cultural que existe no país, Rapadura conta que se tornou mais humano por meio da música. Ao ouvir discos de cantores como Raul Seixas e Heleno Ramalho, o rapper sentia que as músicas tinham sido feitas para ele.  E, a partir de então, veio a vontade de compor e cantar sobre seu cotidiano e o da comunidade ao redor. “O rap muitas vezes foi meu pai, me dando lições de vida e disciplina. Nos anos 1990, as mensagens eram muito ligadas ao que vivíamos nas periferias. Você ouvia e se sentia dentro da história, tudo ali era você e se parecia com você, o MC narrava sua vida sem nem te conhecer e você achava tudo aquilo incrível”, conta o artista.

O legado do hip-hop seria o aprendizado diário e a possibilidade de contestar o próprio cotidiano com um microfone nas mãos, além do reconhecimento e da empatia criada entre público e artistas. “Criamos um laço forte que não se quebra e hoje não existem artistas nem fãs, apenas irmãos e irmãs”.

“É uma relação amorosa com a música, eu devo tudo ao ritmo e à poesia”
MC Rodak


Lugar de mulher é no rap

 

Se por muito tempo o nome das mulheres esteve apagado entre as principais batalhas, rimas e apresentações, atualmente elas mostra que lugar de mulher também é nos palcos e criam cada vez mais trabalhos de qualidade. É o caso da brasiliense Tatiane Beladona, que se encanta pela escrita e encontrou espaço para suas poesias através da música. Antes de formar a BellaDona, em parceria com a DJ Janna, Tatiane criou suas próprias composições e participou de projetos de rappers formados só por mulheres. “Eu escrevo o que eu quero, sem rótulos e sem regras. O machismo ainda rola solto dentro do movimento e as Mcs estão lutando fortemente contra, a cena está mudando e as mulheres estão chegando com força total”, afirma a cantora.

Tatiane lembra que a aceitação do estilo musical mudou para melhor e hoje há mais oportunidades de trabalho para os artistas do gênero. No momento, a música em que a rapper fez participação especial, Visão tá ouro, do grupo Tribo da Periferia, soma 19 milhões de visualizações no Youtube. A integrante do BellaDona conta que se sente feliz ao perceber que hoje o rap existe em diversas vertentes e estilos e que encontra na cultura hip-hop um caminho para evidenciar os fatos ao seu redor. “Uma das coisas mais importantes que tem no rap é a verdade. Se você tiver verdade nas suas palavras se você estiver colocando autenticidade na sua música, ela pode correr o mundo. A importância do rap no cotidiano das periferias vem dessa verdade, é onde o jovem reafirma sua identidade constantemente”.

Novos suportes

Com apenas 25 anos de idade, Gustavo da Hungria Neves, conhecido como Hungria hip-hop, acumula mais de 70 milhões de visualizações nas músicas de sua página no Youtube. Tendo iniciado sua carreira ainda na adolescência, o cantor ganhou grande visibilidade através da internet, um dos principais suportes para a divulgação de trabalhos da atual geração de músicos e cantores. Hungria  compõe suas canções pensando naquilo que também gostaria de ler e ouvir. “É uma forma de estar perto das pessoas e poder levar uma mensagem. Não só um estilo, mas toda a cultura da periferia tem sua importância, principalmente para dar esperança de dias melhores”, declara. Para o cantor, a inspiração está no cotidiano, desde crianças jogando bola na rua até histórias contadas em família.

Transformação

Enquanto isso, Délcio Venâncio, conhecido como Rodak MC, mantém sua criação musical focada no Distrito Federal, mais precisamente na Ceilância, onde começou, em 1996. O MC lembra que há espaços de sobra para a produção artística na cidade, mas faltam incentivos governamentais para financiar projetos sociais e eventos voltados aos quatro elementos do hip-hop. “A mudou totalmente a minha postura e as minhas atitudes. O rap tem uma importância fundamental no cotidiano do jovem periférico. As músicas expressam a violência do dia a dia nas quebradas, mostram a história dos jovens que se tornam sua própria vítima com o envolvimento no crime”, afirma o rapper.
Rodak lembra que o ritmo expressa uma revolta através das letras, criando a possibilidade de alertar outros jovens. A poesia das canções mostra a realidade de quem compõem e cria relações de empatia e reconhecimento através da arte. Entre rimas, batidas, batalhas e histórias reais, o hip-hop se consolida como um movimento cultural cada vez mais forte e de grande importância para a expressão da identidade das periferias.


» Depoimento / DJ Raffa
“Nas periferias, o hip-hop salvou muitas vidas. Posso afirmar isso porque trabalhei com muitos jovens durante esses anos. Usar sua energia em vez de cometer crime e usá-la pra fazer música foi um dos chamarizes. Realizei anos atrás ao lado do Rapper Japão do Viela 17 e Paulo do Sobreviventes de Rua um projeto no antigo Caje. Lá, colocamos os internos em medidas socioeducativas para escrever as letras de rap dizendo porque estavam ali e depois cantarem a música. Muitos só caiam em si quando ouviam suas próprias histórias em forma de rap cantadas por eles mesmos. Dava pra ver nos olhos em lágrimas que ali a gente tinha despertado consciência e que a vida deles nunca mais seria a mesma. Foi maravilhoso.”