Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Zygmunt Bauman deixa importante legado sociológico

O pensador tocou nas grandes feridas de nosso tempo e levantou questões, provocações e perplexidades

Zygmunt Bauman, o sociólogo que morreu na segunda-feira, aos 92 anos, era o mais agudo e original pensador da atualidade. Ele tocou nas grandes feridas de nosso tempo e nos deixou um rico legado, não propriamente de verdades, mas de indagações, provocações e perplexidades. Escreveu mais de 40 livros sobre os descaminhos, os dilemas e os desafios do mundo pós-moderno. Em vez de se dedicar a exegeses acadêmicas, a serem partilhadas apenas por seus colegas de universidade, ele travou um corpo a corpo dramático com as grandes questões do mundo contemporâneo, assumindo plenamente a responsabilidade e o risco de intelectual público.

A chave interpretativa de Bauman para analisar as transformações vertiginosas da pós-modernidade é o que chama de modernidade líquida. Em mãos menos habilidosas, o conceito poderia se tornar demasiado esquemático e repetitivo. No entanto, é impressionante a capacidade de Bauman em estabelecer conexões surpreendentes entre aspectos tão diversificados quanto o capital, as relações comunitárias, a individualidade, o trabalho, a internet, a liberdade, a cultura, as prisões, a guerra, a economia, o tempo, o espaço, os costumes, a velocidade e a efemeridade.

Bauman detecta as origens da liquefação pós-moderna no próprio impulso da modernidade no sentido de transformações radicais. No Manifesto Comunista, Marx e Engels já anunciavam: tudo que é sólido se desmancha no ar: ;Não foi o ;derretimento; dos sólidos seu maior passatempo e principal realização? Em outras palavras, a modernidade não foi ;fluida; desde sua concepção?;, indaga Bauman em Modernidade líquida.

A criação de um espaço virtual, a velocidade das comunicações, a internacionalização da produção e volatilidade dos capitais ensejaram as condições para a formação de uma modernidade líquida. Bauman distingue duas características que diferenciam a modernidade da pós-modernidade. A primeira é o colapso gradual e o rápido declínio da antiga ilusão moderna: da crença de que há um fim do caminho em que andamos, um estado de perfeição a ser atingido na direção de uma sociedade boa e justa. A segunda mudança é a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres modernizantes. ;O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana, vista como dotação e propriedade coletiva da espécie humana, foi fragmentado (;individualizado;), atribuído às vísceras e energia individuais e deixando à administração dos indivíduos e seus recursos.;

Direitos humanos


Esse deslocamento de foco teve como consequência uma relevante mudança no discurso ético e político da perspectiva de uma sociedade justa para o campo dos direitos humanos: ;Isto é, voltando o foco daquele discurso ao direito de os indivíduos permanecerem diferentes e de escolherem à vontade seus próprios modelos de felicidade e de modo de vida adequado;.

No entanto, a transladação de perspectiva do cidadão para o indivíduo apresenta problemas. O indivíduo é o maior inimigo do cidadão, alertava Alex de Tocqueville. O cidadão tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade ; enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou prudente em relação à ;causa comum;, ao ;bem comum;, à ;boa sociedade; ou à ;sociedade justa;, observa Bauman: ;As duas coisas úteis que se espera e se deseja do ;poder público; são que ele observe os ;direitos humanos;, isto é, que permita que cada um siga seu próprio caminho, e que permita que todos o façam ;em paz; ; protegendo a segurança de seus corpos e posses, trancando criminosos reais ou potenciais nas prisões e mantendo as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes e todo tipo de estranhos constrangedores e maus;.

Com o avanço da internet e outras novas tecnologias da comunicação, a situação se agravou, pois o interesse público foi colonizado pelo interesse privado numa era de soberania do indivíduo. As preocupações dos indivíduos prevalecem largamente sobre os da cidadania em um sentido mais amplo: ;O interesse público; é reduzido à curiosidade sobre as vidas privadas de figuras públicas e a área da vida pública é reduzida à exposição publica das questões privadas e a confissões de sentimentos privados (quanto mais íntimos melhor);, argumenta Bauman.


"A grande perversão do sistema dos ricos é que acabam sendo escravos. Nada os sacia, entram em colapso, uma catástrofe"
Zygmunt Bauman

O pensamento de Bauman


Para que o poder tenha liberdade de fluir, o mundo deve estar livre de cercas, barreiras, fronteiras fortificadas e barricadas. Qualquer rede densa de laços sociais, e em particular uma que esteja territorialmente enraizada, é um obstáculo a ser eliminado. Os poderes globais se inclinam a desmantelar tais redes em proveito de sua contínua e crescente fluidez, principal fonte de sua força e garantia de sua invencibilidade. E são esse derrocar, a fragilidade, o quebradiço, o imediato dos laços e redes humanos que permitem que esses poderes operem.



O que os leva a aventurar-se no palco público não é tanto a busca de causas comuns e de meios de negociar o sentido do bem comum e dos princípios da vida em comum quanto a necessidade desesperada de ;fazer parte da rede;. Compartilhar intimidades, como Richard Sennett insiste, tende a ser o método preferido, e talvez o único que resta, de ;construção da comunidade;. Essa técnica de construção só pode criar ;comunidades; tão frágeis e transitórias como emoções esparsas e fugidias, saltando erraticamente de um objetivo a outro na busca sempre inclusiva de um porto seguro: comunidades de temores, ansiedades e ódios compartilhados ; mas em cada caso comunidades ;cabide;, reuniões momentâneas em que muitos indivíduos solitários penduram seus solitários medos individuais.


A globalização produziu um enorme impacto no mundo do trabalho, contaminado pela liquefação, a volatilidade, a flexibilização e a precariedade. Ele perdeu a relevância que tinha na era da modernidade sólida e do capitalismo pesado. ;O trabalho não pode mais oferecer o eixo seguro em torno do qual envolver e fixar autodefinições, identidades e projetos de vida. Nem pode ser concebido com facilidade como fundamento ético da sociedade, ou como eixo ético da vida individual.

A conexão do capital com o mundo do trabalho também sofreu um abalo com a globalização. O capital ganhou uma liberdade de movimentos inimaginável no passado. Rompeu sua dependência em relação ao trabalho com uma nova liberdade de movimentos, impensável no passado. ;A reprodução e o crescimento do capital, dos lucros e dos dividendos e a satisfação dos acionistas se tornaram independentes da duração de qualquer comprometimento local com o trabalho;.

Com isso, os estados-nação perderam força nas negociações com os grandes grupos empresariais ou os grandes investidores. A tendência é que os governos se alinhem ;criando melhores condições para a livre empresa;. Segundo Bauman, na prática, isso significa baixos impostos, menos regras e, acima de tudo, um mercado flexível. ;Em termos mais gerais, significa uma população dócil, incapaz ou não desejosa de oferecer resistência organizada a qualquer decisão que o capital venha a tomar;.

No entanto, Bauman alerta para o fato de que o desemprego nos países prósperos tornou-se ;estrutural;: para cada nova vaga há alguns empregos que desaparecem, e simplesmente não há empregos suficientes para todos. E tendência do progresso tecnológico e dos projetos de racionalização é de anunciar cada vez menos empregos: ;Empregos seguros em empresas seguras parecem parte da nostalgia dos avós. Na falta de segurança a longo prazo, a ;satisfação instantânea; parece uma estratégia razoável;.

Riqueza concentrada
E, para os que se alinham na defesa da subserviência aos ditames do mercado, Baumam contra-argumenta que no mundo globalizado mais de 70% da riqueza estão concentrados nas mãos de 2%. E esse modelo tende a ampliar o monopólio da riqueza e socializar a pobreza. É visível a tendência de pauperização das classes médias rumo a um ;precariado;, que substitui o antigo proletariado.

Em um mundo de instabilidade, insegurança e fugacidade, os laços afetivos, comunitários e as parcerias também se enfraquecem. E tendem a ser vistos e tratados como coisas a serem consumidas, e não produzidas.

Ao longo de 40 livros, Baumam delineou um mapa dos problemas da pós-modernidade de uma maneira tão abrangente que, nas palavras do cineasta Alberto Cavalcanti, quase que reconverteu a modernidade líquida em modernidade sólida.