Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Minissérie 'Dois irmãos' tem início hoje; Cauã Reymond é o protagonista

Reymond vai viver os gêmeos separados na infância por causa de uma briga

O romance Dois irmãos, de Milton Hatoum, tem uma trama complexa.Várias camadas de tempos se sobrepõem enquanto o narrador conta uma história que revisita o passado. Publicado em junho de 2000 e premiado com o Jabuti de melhor romance no ano seguinte, o livro já foi tema de história em quadrinhos e peça de teatro. Agora, chega à televisão em forma de minissérie dirigida por Luiz Fernando Carvalho e com roteiro de Maria Camargo.

Dois irmãos narra uma história familiar de imigrantes libaneses em Manaus, uma saga que começa com o casal Zana e Halim e se prolonga pelos conflitos entre os gêmeos Yaqub e Omar. Narrada por Nael, o filho da empregada Domingas, a história passeia por um drama pontuado por paixões, incesto, violência e buscas de identidades que ora parecem perdidas, ora se revelam óbvias. Manaus é o cenário, mas também um personagem, assim como o tempo, cuja passagem define escolhas (e a falta delas) e destinos. Cheio de silêncios e de coisas não ditas, o romance de Hatoum tem algo que Luiz Fernando Carvalho classifica de fundamental ao ser transposto para a televisão: ;As entrelinhas;. ;Talvez o maior desafio seja reencontrar a medida entre o que é literatura e o que é televisão;, explica Carvalho. A minissérie em 10 capítulos faz parte do Projeto Quadrante, uma aventura autoral na qual o diretor diz buscar um reencontro com o Brasil. Para o Quadrante, ele já dirigiu Capitu, A pedra do reino e Dançar tango em Porto Alegre, todas veiculadas na Globo. Os detalhes da série também estarão no livro Fotografia ; O processo criativo dos atores de Dois irmãos (Ed. Bazar do Tempo), com depoimentos dos atores.

Adaptação

Dois irmãos é um livro difícil de adaptar e a roteirista Maria Camargo levou mais de 13 anos debruçada sobre o texto. Primeiro, concebeu o roteiro de um longa, mas acabou por transformá-lo em capítulos quando a Globo deu o sinal verde para a produção da minissérie. Maria leu o livro várias vezes e contou com uma espécie de consultoria de Milton Hatoum. ;É uma história longa de amor com o livro;, conta a roteirista. ;Li em 2002 e, na época, fiquei bastante apaixonada pela história. Já estava escrevendo o roteiro e achei que aquilo podia ir para além da beleza do livro como literatura. Achava que era tão bonito que merecia chegar a um número maior de pessoas por outros campos, outras linguagens.;

Maria conheceu Hatoum em uma Bienal do Livro e o convenceu a autorizar a escrita de um argumento para cinema. Ele gostou do que leu e, pouco tempo depois, o projeto de um longa se estendeu para a minissérie. ;Sempre achei que rendia mais uma minissérie do que um filme porque, como era uma história com várias épocas, uma saga mesmo, achava que para fazer um longa-metragem teria que fazer um recorte muito radical e que, talvez, a história não ganhasse com isso;, lembra.

Em 2007, começou a conversar com Luiz Fernando Carvalho sobre a possibilidade de tocar o projeto e, três anos depois, escreveu a primeira versão, então com oito capítulos. Como era muito difícil e caro filmar na Amazônia, o projeto acabou interrompido para ser retomado apenas em 2014, já com a versão dos 10 episódios que vão ao ar a partir de hoje.

Voz narrativa

Vivido por Irandhir Santos, Nael conduz o fio narrativo com as lembranças da família na qual cresceu e da qual, de certa forma, acaba por fazer parte. Cauã Reymond vive os gêmeos Omar e Yaqub, separados na infância por causa de uma briga quase fatal.

Filmado, principalmente, na cidade cenográfica da Globo, a série também tem cenas em Manaus e à beira do Rio Negro, paisagens que ajudam a destacar a passagem do tempo e funcionam como metáfora de uma decadência que se estende do núcleo familiar ao espaço urbano. Milton Hatoum gostou do resultado. ;Acho a adaptação primorosa. Maria leu muitas vezes o livro e o entendeu em profundidade. Todo o núcleo dramático do romance está no roteiro, com as características de cada personagem. É um roteiro que demorou anos. Quando li a versão final, não tinha muita coisa a observar;, garante o escritor, que fez apenas ajustes quanto à linguagem e à forma manauara de falar. ;O Irandhir Santos tem uma voz poderosa, convincente. Essa era uma questão, como trabalhar com o narrador. E uma questão central de qualquer romance é a posição do narrador. A outra é o tempo: a Maria fez vários cortes temporais, mas com uma passagem muito convincente de uma época para outra.; Abaixo, o diretor Luiz Fernando Carvalho explica como a minissérie se encaixa em um projeto de criação de uma linguagem e de um estética particulares.

Dois irmãos
A partir de hoje, depois de A lei do amor, Globo.

; Literatura atraente
Assim como fez com Fábio Moon e Gabriel Bá para a adaptação para os quadrinhos e com Roberto Lage para a direção da peça, Milton Hatoum teve longas conversas com os criadores para ajudar nos ajustes finais. Dois irmãos é o segundo romance que vê chegar às telas. Órfãos do Eldorado virou filme em 2015 sob direção de Guilherme Coelho e Relato de um certo Oriente vai ser adaptado por Marcelo Gomes. Além disso, o diretor Sérgio Machado já adquiriu os direitos para filmar um conto de Cidade ilhada, também com roteiro de Maria Camargo.

Entrevista / Luiz Fernando Carvalho

Você escreveu que o Projeto Quadrante nasceu de um desejo de reencontrar e contar o país. O que Dois irmãos conta
sobre o país?

Se há alguma coerência na minha trajetória como diretor de televisão, é a necessidade de revelar um país escondido, à margem de seu rosto pintado pelas consagrações imediatas eleitas pelo mercado. Em termos de literatura, a obra do Milton Hatoum, apesar de se passar em Manaus, não tem como tema a visão clichê da selva amazônica. Unindo o meu olhar sobre a região às entrelinhas do Milton, encontramos uma região Norte mais humanizada e capaz de refletir sobre as várias camadas que compõem aquele território.

Que futuro vê para o Brasil nesse plano de abandono?
O abandono da cultura é o grande extermínio produzido pela sociedade de consumo a qualquer nação. Nas últimas décadas, percebo o homem comum cada vez mais abandonado. E talvez isso seja reflexo da desconexão com sua ancestralidade, que é composta, dentre outras coisas, por suas raízes culturais. A cultura é um território amplo que vai desde as questões mais práticas do âmbito social e cotidiano às coordenadas espirituais: a relação do homem com a natureza, com a sua religião, com seus antepassados. As festas e festejos que decorrem desta ancestralidade sumiram ou estão em extinção.

E qual a consequência disso?
Toda essa ruptura recai sobre o homem simples, justamente aquele que não teve acesso a uma formação consistente, que não teve a oportunidade de frequentar boas escolas, e, portanto, não saberia mesmo como se recriar diante de tantas transformações aleatórias e distantes de seu espírito e condição social. A simples possibilidade da entrada em um sistema de consumo não reestabelece essa conexão da humanidade com o sagrado. Seria necessário rever todo o processo de valorização de nossa história cultural, nossas heranças e, em perspectiva, oferecer a este homem simples, fraterno.

Como a televisão pode participar da educação? Qual o papel de projetos como Dois irmãos nessa educação?
No meu modo de sentir, cabe aos especialistas da indústria audiovisual como um todo, não exatamente apenas à televisão, mas também o cinema, a internet e todo o mercado de entretenimento, a reflexão sobre o seu papel na continuidade da formação de uma nação. A missão maior dos veículos de massa hoje é a de criarmos não somente consumidores, mas de abraçarmos, numa busca constante, a reflexão de que o entretenimento não se basta com seus lucros, ele precisa ir além. Sua missão deve ser maior. Mesmo sem abrir mão de lucro algum, se faz necessário abraçar esta missão maior, que é a de formar cidadãos. Sei que isso parece um passo muito difícil dito assim, mas se não pensarmos isoladamente, e sim por meio de uma reflexão ampla que envolva todos os setores de produção da indústria e seus criadores, a ficção brasileira, independente do suporte, atingirá um patamar de excelência, unindo a estética à ética. Dois Irmãos alia estas questões. É uma dramaturgia de formação, no sentido de que, paralelamente à história, está contando também a formação do país, atravessando praticamente um século ; e isso é informação relevante, é cultura, é educação formal e informal ao mesmo tempo, já que nos conta através das emoções de uma história.

Como acessar o espectador que hoje se encontra em estado de abandono cultural?
Não é uma questão específica da televisão. É uma questão planetária. É evidente que houve um rebaixamento cultural no mundo, o nível de reflexão, os temas, enfim, tudo parece um pouco infantilizado demais pelas leis que dominam a indústria. Ao mesmo tempo não podemos esquecer que esses espectadores ; sejam eles de teatro, cinema ou televisão ; são antes de tudo seres humanos, precisam se relacionar com as fabulações, os arquétipos, as emoções, as memórias e seus afetos. O meu trabalho parte desse princípio, como uma espécie de tentativa de conexão com essa necessidade de uma relação com essa potência.