Ana Miranda gosta de dizer que os romancistas são historiadores que fingem mentir, assim como os historiadores são romancistas que fingem dizer a verdade. É uma brincadeira para evidenciar como os limites entre a ficção e realidade são muito tênues, uma característica bastante presente na obra da escritora.
;Na verdade, a coisa é um grande imbróglio sem limites e sem discernimento possível, tudo o que se realiza em palavras tem um lado subjetivo predominante. Para mim, no meu íntimo, sou romancista o tempo todo, fingindo fazer história e dizendo verdades;, revela. Mesmo assim, Ana acaba de lançar aquele que é seu livro mais fiel a uma história que teve data e hora para acontecer. Xica da Silva ; A cinderela negra é a primeira biografia não literária da autora de Dias e Boca do inferno.
É um exercício diferente para quem biografou Gregório de Matos e Gonçalves Dias em uma narrativa belamente romanceada. Agora, a personagem não é fruto de uma construção típica do romance e a narrativa não comporta diálogos ou personagens inventados. Não há, como diz Ana, a presença da literatura.
;No entanto, como sou romancista, tudo acaba sendo romanceado. Cada pessoa escreverá uma biografia diferente da Xica da Silva. O princípio é aquela frase que todos nós dizemos ou ouvimos: minha vida daria um romance. Ou seja, toda biografia não passa de uma ficção;, garante.
Encantamento e olhar feminino
Ana acredita que autores não escolhem personagens, mas são escolhidos por eles. ;Xica da Silva me arrebatou desde que ouvi falar nela pela primeira vez, com a sua aura de Cinderela, evocando o mistério do sexo, da sedução, as lições de feminilidade e de superação. Sempre quis trabalhar com a nossa herança africana, pensei mil vezes num romance assim, mas foi a Xica quem veio me abrir essa porta;, conta.
A autora já havia acumulado um bom material desde a publicação de O retrato do rei, romance sobre a Guerra dos Emboabas, o conflito pela exploração das jazidas de ouro de Minas Gerais no início do século 18.
O universo de Xica já era familiar para Ana. ;Estive sempre tangenciando o período e a região, nas minhas leituras. Mas a Xica que eu sentia perto de mim, que eu conhecia, era mais lenda. Um dos melhores trabalhos de levantamento desse tema é uma biografia escrita pela Júnia Ferreira Furtado, na qual ela revela muitas outras Xicas da Silva na região e época. Esses fenômenos nunca são isolados;, conta a autora.
A maior parte da pesquisa para retratar Xica da Silva, a escrava alforriada que foi mulher de um explorador de diamantes e virou mito na sociedade de Diamantina em meados do século 18, veio de escritos e pesquisas sobre os costumes da época e da região. Ana traça a trajetória da personagem desde antes de seu nascimento ao contar a história da mãe de Xica, uma escrava mina (vinda da Costa da Mina, no golfo da Guiné) que veio para o Brasil no ventre de um navio negreiro.
Xica da Silva ; A cinderela negra é um livro de história combinado com uma reconstituição de cenários em narrativa que privilegia o olhar feminino para uma das figuras mais lendárias do período colonial brasileiro.
Três perguntas // Ana Miranda
Das características de Xica, qual a que mais te surpreendeu
e que é fundamental para compreender a personagem?
A que mais me surpreendeu foi o lado maternal, religioso, caritativo, todo um lado bem-comportado da Xica da Silva, porque só se buscava o seu lado irreverente, poderoso ou sensual. E o que acho fundamental para a compreendermos como ser humano e histórico é o fato de ter sido uma espécie de mecenas da arte, ela construiu um teatro de bolso, mantinha atividades com musicais, teatrais, de dança, de folclore. E a herança negra dela sempre ficou meio de lado, porque ela teve de se assemelhar à fidalguia portuguesa para ocupar o papel social que ela conquistou.
O que a história de Xica representa para a história do Brasil?
Ela tem, em torno de si, todo o segredo da colonização mais cruel, opressora e violenta, talvez, da nossa história. Olhando a Xica da Silva, um historiador pode vasculhar segredos não apenas do enriquecimento, da extração de diamantes, das relações entre rei e súditos, entre Reino e Colônia... Mas segredos de costumes, até mesmo segredos das alcovas coloniais. Dos amores, das artes, da alteridade entre homem e mulher, entre branco e negro. Ela guarda muitos significados.
É importante, para você, estabelecer essa linha entre
a biografia romanceada e a biografia pura e simples?
Não sei se é importante, mas achei simpático e honesto separar, pelo tipo de letra, o que é texto documental ou documentado, do que é um cenário imaginado a partir de uma ocorrência real ; como, por exemplo, o primeiro encontro de Xica com o Contratador, ou a partida do Contratador. Estes, os imaginados, mas reais, estão em itálico no livro. Também esse artifício demarca o tipo de narrativa, mais ensaística ou mais romanceada.
Xica da Silva ; A cinderela negra
De Ana Miranda.
Record, 520
páginas. R$ 69,90