Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

O dramaturgo Santiago Serrano se declara a Brasília: 'Quase um casamento'

O autor argentino conversou com o Correio sobre as diferenças entre o fazer cênico lá e aqui


São poucos os que conseguem falar com tanta propriedade sobre o teatro brasilense como Santiago Serrano. E olha que ele nasceu em Buenos Aires. Mas desde a estreia do espetáculo Dinossauros, há mais de uma década, o dramaturgo nunca mais deixou a capital federal de lado. Pelo contrário, estreitou os laços e, hoje, tornou-se uma das figuras mais queridas da classe artística por aqui.

Além de Dinossauros ; um marco absoluto do teatro brasiliense com Carmem Moretzsohn e Murilo Grossi ;, Santiago assistiu a montagem de outros quatro espetáculos seus em Brasília, com destaque para Noctiluzes e A autópsia de um beija-flor, que acaba de estrear com direção de Sérgio Sartório, que divide a cena com André Deca.

Visitante assíduo da capital, Santiago anda por nossas bandas com a intimidade de um típico brasiliense. Passeia por debaixo dos blocos, conhece os melhores cafés e frequenta os teatros, sempre na companhia dos tantos amigos que fez. Em entrevista ao Correio, o autor fala sobre essa relação amorosa com a capital, relembra a carreira em Buenos Aires e tece um nítido panorama sobre as diferenças entre fazer teatro no Brasil e na Argentina. Diferentemente do que se imagina, as coisas por lá também não estão das mais fáceis. Principalmente, quando o assunto é fomento à cultura.

Entrevista // Santiago Serrano
Antes de tudo, como se dá esse flerte tão longo com Brasília? Como começa essa história?
Acho que já é mais que um longo romance, já é quase um casamento. A autópsia de um beija-flor é a quinta obra que estreio em Brasília. Tudo começa com um e-mail que o Guilherme Reis me enviou pedindo para fazer uma leitura dramática de Dinossauros. Para mim, ainda era estranho imaginar a peça encenada em outro idioma. Tinha medo que essa atmosfera musical do espetáculo pudesse se perder, mas não foi o que aconteceu. E mais: quando o Grupo Cena veio a Buenos Aires com Dinossauros, a recepção do público argentino foi emocionante.

Mas imaginou que Dinossauros se tornaria um marco do teatro candango?
Nunca, mas a obra tem um encanto especial que atrai e alcança o espectador. Além disso, o trabalho de Carmem Moretzsohn e Murilo Grossi é perfeito. O Guilherme Reis apostou na simplicidade do texto e pintou com delicadeza cada uma das características dos personagens.

E A autópsia de um beija-flor, que acaba de estrear, está feliz com o resultado?
Estou sempre satisfeito quando o processo de trabalho é de tanta entrega e intercâmbio como acontece neste caso. O Sérgio Sartório é um cara que adoro e tanto admiro. Temos uma forte conexão de troca, o que me dá absoluta confiança em sua visão. Agora, vamos esperar o retorno do público, até porque é uma obra que se difere das anteriores.

Em que sentidos?
Fala do poder. Na verdade, vai além disso. Fala do lado obscuro das relações. Fala daqueles que usam das tragédias alheias em benefício próprio. Nestes tempos, como sabemos, o poder está centrado na mão daqueles que sabem manipular a informação e utilizá-la para se auto favorecer. É um fenômeno mundial. No fundo, por meio de um humor ácido e de uma dose de suspense, A autópsia de um beija-flor fala da nossa realidade.

Mas rola uma pressão, interna ou externa, para repetir a repercussão de Dinossauros?
Não. Não me bate essa pressão. Cada obra é única e especial, e as adoro como se minhas filhas fossem. Não espero nada delas. E elas sempre me surpreendem. É maravilhoso ser surpreendido com o que se criou.

Bom, vamos falar um pouco da vivência na Argentina... Além do teatro, a psicanálise também te ocupa. Como se dá essa trajetória?
Eu passei minha vida como bígamo. Sou apaixonado pelo teatro, mas igualmente apaixonado pelo meu lado psicanalista. Durante um tempo, carreguei uma culpa por essa vida dupla mas, agora, compreendo que foi maravilhoso ter esses dois amores. Bom, eu me formei como ator, logo depois como diretor e comecei a escrever. Tive um grupo por 10 anos, com quem estreei Dinossauros e outras obras. Uma experiência enriquecedora mas que acontece justamente em um período que eu estava estreitando os laços com a dramaturgia. Preferi encerrar as atividades do grupo e focar no lado dramaturgo. Passei um tempo perdido, mas recuperei minha liberdade.

O teatro te seduz desde a infância?
Meu primeiro contato com o teatro não foi em um teatro. Certo dia, fui dormir na casa de minha avó. Na verdade, foi a primeira vez que dormi fora de casa. Minha avó apagou as luzes e ligou o rádio para escutar uma radionovela transmitida ao vivo. Fiquei fascinado com as vozes e diálogos. Passou muito tempo até que eu decidisse estudar teatro, até por ser tímido e introvertido, mas esse momento na infância me marcou profundamente. Aqueles diálogos eram maravilhosos.

E como é a relação do povo argentino com o teatro? Faz parte do cotidiano cultural da população?
Vocês têm contato com o teatro desde cedo?
Temos uma relação intensa com o teatro. Impossível não falarmos da importância do Teatro Abierto (movimento cultural dos anos 1980 contrário ao regime militar argentino) no fim da ditadura, ou ainda do Teatro x la identidad (manifesto de atores, dramaturgos, produtores, técnicos e coreógrafos dispostos a denunciar o sequestro de bebês durante a ditadura militar) na recuperação de crianças apreendidas. O teatro não é mera ferramenta criativa, mas definitivamente uma ferramenta de luta política. Temos também uma particularidade: talvez, haja mais gente interessada em ocupar o palco do que assistir às peças. Há um potencial muito forte por fazer, produzir, fomentar teatro. São centenas de escolas de atores, diretores e dramaturgos. E, sim, é cada vez mais frequente o contato dos pequenos com o teatro.

E as políticas voltadas para o teatro? Há recursos do governo ou o teatro depende da bilheteria?
Temos subsídios do governo para a produção de espetáculos, mas são somas pequenas que sempre aparecem atrasadas e mal cobrem minimamente os gastos. Geralmente, os atores e diretores precisam se dedicar a outras atividades para sustentar a produção. Não há fomentos para circulação, nem incentivos para levar os trabalhos para regiões menos favorecidas, por exemplo. O teatro é uma paixão pela qual tão poucos conseguem viver.

Reclamamos muito sobre as dificuldades de se fazer teatro no Brasil, mas as coisas não parecem
muito diferentes por aí...
Fazer teatro é sempre uma odisseia. A principal diferença talvez seja que na Argentina não temos grupos estáveis. Na maioria das vezes, o elenco se forma especificamente para um espetáculo. Ou seja, temos várias pessoas envolvidas com várias obras, o que gera um prejuízo no rigor do trabalho, acredito.

Assim como no Brasil, o panorama para a comédia é melhor?
No teatro comercial, a comédia reina. No teatro independente, há espaço para outros gêneros.

Quando pensa no teatro brasileiro, que nomes lhe tomam a mente?
Grupo Galpão (Belo Horizonte); Os Clowns de Shakespeare (Rio Grande do Norte); o grande Antunes Filho, Teatro Kaus (São Paulo); Grupo Lume (São Paulo), Eduardo Okamoto, entre outros. De Brasília, posso mencionar os consagrados Guilherme Reis, Carmem Moretzsohn, Murilo Grossi, Chico Sant;Anna, João Antônio, Bidô Galvão, Hugo Rodas, Irmãos Guimarães... Também adoro a geração de Sérgio Sartório, Sérgio Maggio, Adriana Lodi... Assim como os jovens da Andaime, o Francis Wilker Carvalho, Rodrigo Fischer, Gabriel Calonge... E por aí vai. Tantos talentos de diferentes estéticas, uma maravilha. E espero que algum dia, quando fizer essa pergunta a outra pessoa, possam lembrar do meu nome. Tenho uma relação profunda e amorosa com Brasília. Repito: quase um casamento.