O Brasil contemporâneo, com as crises e desajustes que sacudiram o país recentemente, virou fonte do que há de melhor na produção literária recente. É da sociedade brasileira que tratam Ricardo Lísias, José Luiz Passos e Michel Laub em seus romances recém-chegados às prateleiras das livrarias. Publicados no início do mês, A vista particular (Lísias), O marechal de costas (Passos) e O tribunal da quinta-feira (Laub) trazem temáticas pungentes e narrativas que mostram como a ficção brasileira pode reagir rapidamente e com muita qualidade ao cenário social e político do país.
Para José Luiz Passos, que é professor de história da literatura brasileira na Universidade da Califórnia, essa reação é um fenômeno recente, especialmente quando se trata de romances que versam sobre política e história contemporânea. ;Nos Estados Unidos, isso existe. Na Inglaterra também, o romance histórico é muito importante. Nós não temos. Tenho a impressão de que isso é fruto de uma certa obsessão da literatura brasileira pelo tema da identidade cultural, legado do nosso modernismo. A maior parte das nossas narrativas são sobre indivíduos privados que se contrapõem a uma cultura mais geral, a ideia de uma heroína problemática que navega numa cultura adversa, mas não temos, de fato, uma reflexão sobre o que é a representação política e a crise da democracia;, acredita.
Impasse simbólico
Ricardo Lísias já havia escrito muito sobre São Paulo quando decidiu mudar o foco para o Rio de Janeiro. A vista particular tem a capital fluminense como cenário e, como protagonista, um artista plástico empenhado em construir uma instalação na qual a favela e seus habitantes são o próprio suporte da obra. José de Araribóia tem essa ideia genuína, complexa e genial de se aproximar do chefe do tráfico de uma típica favela carioca para, juntos, criarem uma obra nunca vista, fruto de pura espontaneidade e sensibilidade.
Araribóia, que ao final do livro é apenas Arara, não planejou a fama, não calculou cada passo da dança-performance que, depois de filmada pelo traficante e viralizada no YouTube, o projeta para o topo da pirâmide do mercado de arte. Daí para conceber a instalação, que é a própria favela, vai um gesto simples. Obviamente, Araribóia consegue uma projeção midiática e uma repercussão capaz de catapultá-lo para as exposições mais importantes do planeta.
Não se sabe muito bem quais as intenções de Araribóia, nem que tipo de caráter carrega o artista, mas isso não importa tanto assim. Há algum tempo, Lísias queria explorar as proximidades e distâncias entre a literatura e as artes plásticas. Como o Rio de Janeiro vivia um momento de grande atenção graças à organização das Olimpíadas, Lísias achou que era a hora de escrever sob a perspectiva dessa cidade.
É mais sobre as artes plásticas e menos sobre a literatura que autor reflete em A vista particular. A dificuldade de a sociedade em lidar com os símbolos da arte contemporânea é central no romance. Quando a instalação de Araribóia é transportada para um espaço comumente entendido como ;da arte;, as fronteiras entre realidade e representação se tornam incompreensíveis para os habitantes do Rio de Janeiro, para os integrantes da obra e para o próprio meio artístico. ;Ao contrário de muita gente, admiro bastante muita coisa da arte contemporânea. Dessa forma, não entendo como a arte contemporânea receba tanta resistência por parte do público;, diz.
A vista particular
De Ricardo Lísias. Alfaguara, 126 páginas. R$ 34,90
Entrevista com Ricardo Lísias
Há uma crítica à arte contemporânea e à incapacidade de a sociedade, de forma geral, lidar com os símbolos da arte contemporânea?
Acho que de certa forma sim, sobretudo a segunda parte da pergunta. Ao contrário de muita gente, admiro bastante muita coisa da arte contemporânea. Acho as soluções de Nuno Ramos, Richard Serra, Anselm Kiefer, Joseph Beuys, Tunga e muitos outros bastante interessantes. Dessa forma, não entendo como a arte contemporânea muitas vezes receba tanta resistência por parte do público. Mesmo a crítica de artes plásticas me parece em alguns momentos alcançar um patamar bastante elevado.
Tem um momento em que o narrador explica que o artista só perde para os atentados em Paris. A ficção tem muito a perder para a realidade?
Tudo a perder, muito infelizmente. As pessoas são escravas dessa tal de realidade e se agarram a ela como se fosse uma bóia em meio a uma tormenta. Acho lamentável: a realidade é algo muito pouco atraente, normalmente nos violenta e oprime e certamente não é a parte mais interessante da vida. Por que será que o leitor não consegue se esquecer dela?
O Rio de Janeiro é uma cidade surreal? A ficção perde para a realidade no Rio?
Acho que a realidade carioca, bem como a brasileira, é realmente essa. A questão é que as pessoas não querem enxergar, ou talvez já tenham tornado natural o que deveria ser um absurdo. Por fim, talvez já estejamos acostumados à barbárie que nem mesmo a reconheçamos mais.
Na tua opinião, o que a arte pode fazer pela realidade quando esta última se torna surreal?
A arte pode intervir na realidade de muitas maneiras, talvez procurando efeitos que denunciem discursos ocultos, apagados por alguma razão, excluídos de vários espaços por motivos nem sempre muito claros. A arte hoje talvez deva ser mais desagradável que a realidade, para mostrar a que todos estamos submetidos. Ou de repente precise ser complexa a ponto de desnudar a simplicidade de muitos dos nossos enganos. Por fim, quem sabe ela possa assustar para demonstrar que a barbárie não é o nosso ambiente ideal.
Romance histórico
Primeiro vice-presidente do Brasil, Floriano Peixoto foi uma figura essencial para moldar os contornos da democracia brasileira e compreendê-la tal qual se apresenta hoje. Mas foi um sujeito pouco e mal biografado, segundo José Luiz Passos. Como, aliás, boa parte das grandes figuras políticas do país. Especialista em Machado de Assis, professor de literatura brasileira na Universidade da Califórnia (Estados Unidos), Passos ficou intrigado com o marechal ao descobrir, em um sebo, um livro sobre a Revolta da Armada e uma execução ordenada por Floriano.
Ao mesmo tempo em que mergulhava na biografia do oficial que se tornaria o segundo presidente do Brasil, Passos observava com certa curiosidade as manobras que culminariam com o impeachment da então presidente Dilma Rousseff e as manifestações por todo o país. Passado e futuro forneceram o material de O marechal de costas. O romance mergulha na intimidade de Peixoto para mostrar um homem fragilizado e isolado ao mesmo tempo em que inaugura a República brasileira. Em paralelo, uma empregada doméstica observa a cena política brasileira contemporânea a partir da perspectiva de quem trabalha como serviçal em uma casa de classe média alta em pleno século 21.
Passos parece querer dizer que uma coisa é consequência da outra. Não há presente sem passado. A história, por mais que seja produto de um olhar vencedor, está aí para cobrar a conta. ;Eu tinha um interesse grande em fazer com que as pessoas pensassem nos possíveis ecos que há entre a situação atual que enfrentamos, a crise da nossa democracia, que na minha opinião culminou com o processo de impeachement da presidente Dilma, com ecos vindos lá de trás;, explica o autor.
;O início da nossa democracia foi muito conturbado, marcado pelo autoritarismo. A democracia, que deveria começar com a remoção do Imperador e com um governo de representatividade mais ampla, começa com uma ditadura.; Com a renúncia do marechal Deodoro da Fonseca, em 1891, Floriano deveria assumir e convocar novas eleições, mas nunca o fez. Decidiu seguir no cargo até o fim do mandato. ;Aí tive essa ideia de narrar o romance em duas vozes para fazer o leitor experimentar uma sensação de déjà vu, de ecos do passado;, avisa Passos.
O marechal de costas
De José Luiz Passos. Alfaguara, 200 páginas. R$ 44,90
Entrevista com José Luiz Passos
Pelo interese grande de fazer com que as pessoas pensassem nos possíveis ecos que há entre a situação atual que enfrentamos, a crise da nossa democracia, que na minha opinião culminou com o processo de impeachement da presidente Dilma, com ecos vindos de lá de trás, do momento de início absoluto da nossa democracia, que foi muito conturbado, marcado pelo autoritarismo. A democracia que deveria, supostamente, começar com a República e a remoção do Imperador para entrar um governo de representatividade mais ampla, começa com uma ditadura. Aí tive essa ideia de narrar o romance em duas vozes para fazer o leitor experimentar uma sensação de déjà vu, de ecos do passado.
Que correspondências há entre as duas épocas?
Uma das coisas que vejo é um desacordo muito grande entre os três poderes. Você tem o judiciário investigando o executivo, o executivo tentando influenciar, comprando o legislativo, uma grande polarização dos posicionamentos, uma imensa radicalização, com pessoas que são realmente pró ou contra. O debate tem sido muito ácido, muito acalorado. Vejo muito isso agora, de uma maneira que não existia há cinco anos. Também vejo uma espécie de retorno de um pensamento, de uma pauta conservadora e a tentativa de um novo populismo de direita. O que aconteceu no começo da República foi um pouco isso. O império de Pedro II é um um império liberal, o próprio imperador era a favor da abolição, ele realizou conquistas sociais, modernizou muita coisa, criou o Brasil como identidade cultural e unificada. A República nasce por força de um grupo minoritário do exército que se impõe num momento de fraqueza política do Império. A República começa com um grande desacordo entre o que era o legislativo, o judiciário e o executivo. Ela também começa com a desculpa de uma modernização, mas é uma modernização que vem com uma mão conservadora cerceando liberdades civis e democráticas, como a censura. Quem inventa a censura é a República. No Império, o imperador não censurava textos, charges.
E como isso está no romance?
Na história, o que vem depois é fruto do que veio antes. E o que quis fazer no romance é dar uma ideia de circularidade, é dizer: olha, alguns dos impasses de nossa democracia já foram vividos anteriormente de modo muito cruel e com consequências graves para o estabelecimento da democracia. Claro que uma das coisas que Floriano fez -- e acho que é uma das coisas que Temer está tentando fazer, a partir de um grande isolamento, porque os dois são figuras muito silenciosas isoladas -- é tentar unificar novamente o Brasil através desse silêncio e garantir o que eles acreditam que seja a sobrevivência de um estado de direito que consegue pagar suas contas. A mesma crise fiscal e cambial que vivemos hoje aconteceu na época da primeira república. Uma das preocupações de Floriano era a crise fiscal, é muito parecido. E aí os protestos foram acontecendo e fui ficando cada vez mais tocado e com vontade de comentar.
Acha que a literatura brasileira está reagindo mais rapidamente esses acontecimentos?
Acho que sim. Está havendo alguma coisa interessante na ficção contemporânea, na ficção desse último ano, que não havia cinco anos atrás. Está havendo uma tentativa do escritor brasileiro contemporâneo em tematizar esses imapsses da vida contemporânea, da vida política, cultural, identitária. E vejo isso claramente nesses romances lançados no último semestre, do (Daniel) Galera sobre a geração da internet, do Bernardo Carvalho, sobre a crise do corpo e do pensamento erótico, do Cristóvão Tezza com o discurso feminista na Tradutora, no Ricardo Lísias com a questão do papel da arte e da consciência do artista mediando representações entre as classes sociais. Acho que está havendo uma tentativa de comentário mais imediatos e pontuais do que é a situação contemporânea.
Romance geracional
Há uma geração imprensada entre as décadas de 1980 e 1990 que viveu os tempos da liberdade sexual cerceada pela aids, que passou, em velocidade supersônica, de um mundo de relacionamentos analógicos para as relações digitais. Essa geração experimentou, em pouquíssimo tempo, duas formas muito diferentes de se relacionar e O tribunal da quinta-feira é um dos melhores romances contemporâneos escritos sobre o tema. E também um dos mais corajosos. O sétimo romance de Michel Laub fala de julgamentos públicos via rede sociais, traições, encontros e desencontros de gerações, crise de idade, aids e de uma certa desilusão diante de algumas certezas.
No livro, José Victor é um publicitário de 43 anos que se separa da mulher para ficar com a estagiária da agência de publicidade, 20 anos mais nova. Quando a ex-mulher invade a conta de e-mail e descobre mensagens de José trocadas com um amigo de infância, que é portador do vírus HIV, a privacidade do publicitário se esvai. Cuidadosamente editadas pela ex, as mensagens vão parar nas redes sociais. O tribunal da quinta-feira é, também, um livro sobre tolerância. ;Um assunto no qual eu penso há muitos anos em função de nosso dia a dia, que hoje é vivido na internet, no meio dessas tretas e campanhas de difamação e radicalização política. Você não consegue escapar de ter contato com o modelo de debate hoje presente nas redes sociais. E esse modelo é, basicamente, intolerante;, diz Laub.
Tolerância, para o autor, é o grande tema contemporâneo e as redes sociais ajudaram a potencializar as manifestações de intolerância. Laub não é pessimista em relação à internet, embora não seja mais tão entusiasta das redes sociais quanto era há cinco anos. Ele se tornou mais cético e era um pouco desse ceticismo que queria inserir no livro. ;A tendência hoje é que você tenha muito mais contato com pessoas que pensam como você dentro das redes e, obviamente, você não tem mais o contraditório como tinha antes. Se eu escrevesse esse livro cinco anos atrás, ele provavelmente seria um livro mais otimista;, garante o autor.
O tribunal da quinta-feira
De Michel Laub. Companhia das Letras, 184 páginas. R$ 34,90
Entrevista com Michel Laub
Eu queria escrever um livro sobre tolerância e um aspecto que nunca tinha tratado em nenhum livro meu, pelo menos sob esse viés da tolerância, era o da sexualidade. Então foi meio que naturalmente convergindo para isso, esse assunto da doença, do corpo, sempre me interessou, mas eu não tinha tratado diretamente. Eu achava interessante a relação entre o corpo, o desejo sexual mesmo e a questão da tolerância. Então a Aids, nas últimas décadas, foi uma doença que teve um caráter muito simbólico na cultura, em relação a debate de costumes. Em algum ponto do livro, comecei a perceber que havia um paralelo possível entre uma discussão que houve nos anos 1980 e as instituições que a gente tem hoje sobre sexualidade, identidade e Aids. Acabou sendo um motor simbólico para essa trama de uma maneira que, pelo menos para mim, funcionou narrativamente.
É um romance geracional?
Nesse caso sim, porque minha vida sexual começou nos anos 1980 e tenho a impressão de que quem começou sua vida entre fim dos 1980 e início dos 1990 tem uma memória muito forte desse período, mais que uma pessoa que chegou à adolescência imediatamente depois, no fim dos anos 1990. A maneira como lida com sexo e essas noções todas que estão em volta como moralidade, como a culpa, eram noções muito ligadas à Aids na época. E depois, isso acabou. Hoje em dia, de certo modo, elas voltaram, mas por outros caminhos, por caminhos culturais, não por causa de uma doença onipresente. Acho que o leitor da minha idade, de 40 e poucos, lê esse livro de maneira diferente do leitor de 20 anos ou até de 60. E isso pode fazer o livro ter um caráter mais geracional.
Como você lida com as redes sociais?
Lido como qualquer um, você faz lá seu filtro. Particularmente, até porque cresci numa cultura pré-internet, acho que tenho os anticorpos. Não acredito em tudo que leio, tenho o cacoete do jornalista antigo, checo a credibilidade da informação. Mas muitas vezes me vejo enredado nessas ilusões que as redes sociais causam na gente. A gente tem a impressão que está todo mundo falando em determinado assunto, que é o assunto do momento, só que não é, são só seus amigos, 15 amigos seus retuitando coisas daquele assunto. A gente vive numa bolha muito pequena.