Charlie Young é um estudante universitário que começa a perceber que seu verdadeiro gênero não é aquele a que nasceu. Ainda sem forças para revelar à família que se sente mulher, Charlie acaba descobrindo que tem superpoderes e é capaz de manipular a gravidade e voar. Nasce, então, Chalice, uma super-heroína. Na identidade secreta, ele pode ser quem é e assume o posto de, provavelmente, o primeiro transgênero protagonista do universo dos quadrinhos, na recém-lançada série de HQs Alters.
[SAIBAMAIS]Criada pelo veterano dos quadrinhos Paul Jenkis (responsável, entre outras histórias, por A origem, de Wolverine), Alters vai apresentar também outros personagens que descobrem super-poderes e características especiais. Em outra edição, por exemplo, a série vai apresentar um herói que se torna tetraplégico.
Chalice surge no universo dos quadrinhos em um momento em que o desejo de apresentar a diversidade nos personagens é cada vez mais forte. Negros, gays, mulheres, asiáticos, todos eles, aos poucos, foram conquistando mais espaço no mundo das HQs.
A personagem, contou Jenkins, foi inspirada na mãe, uma mulher gay que criou dois filhos e os ensinou valores de igualdade e representatividade. ;Se algum dia chegarmos ao ponto em que raça, sexualidade e identidade de gênero não forem assunto, então teremos chegado lá. Isso é minha mãe falando;, contou o autor em entrevista ao The New York Times sobre a série.
O autor contou que sempre planejou ter um personagem transgênero, mas foi só em 2014 que um fã lhe deu a ideia que acabou gerando Chalice: criar um herói que ainda não tivesse feito a transição e só se apresentasse como mulher no traje. ;Ela só pode ser ela mesmo quando está sozinha;, resumiu Jenkins. O fã, Liz Luu (hoje assistente executivo do Cartoon Network), cedeu a ideia em troca de aulas com Jenkis.
O próprio Jenkins já havia trabalhado a diversidade em projetos anteriores. Na Marvel, ele criou o personagem Sentinela, um super-herói com esquizofrenia. Apesar de tocar no tema da representatividade, Jenkins garante que não pensou em transformar Alters em uma série com lições de moral. ;A coisa mais importante na abordagem deste livro para mim era concentrar nos personagens como heróis e vilões e deixar que essas coisas saíssem durante o processo;, disse.
No Brasil
Criador de Velox, um dos primeiros heróis gays dos quadrinhos brasileiros, Elenildo Lopes destaca a relevância de personagens assim para as HQs. ;Eles têm importância extrema. Hoje, pensamos e buscamos uma sociedade mais justa e igualitária, então nada melhor que termos representatividade em todos os campos;, acredita.
Ele vê Chalice também como um passo fundamental para a representatividade se tornar mais forte no universo dos quadrinhos. ;Chalice é o novo símbolo do atual e do que o futuro nos reserva para o mundo. Estou muito empolgado com essa nova era dos quadrinhos e suas possibilidades;, valoriza. ;Os nossos ídolos, ícones não são e não precisam ser definidos por sua sexualidade, pela cor do cabelo ou por usarem capas ou não. Nada disso importa. O que importa é o interior, as virtudes e o lado humano;, comenta.
Em um momento em que a intolerância ganha contornos fortes, Lopes acredita que é papel da arte levar a discussão a outros níveis. ;Quando uma dita minoria se mostra à luz do dia, outra face também aparece: a intolerância. Ocorrem crimes, discriminação. Temos que repudiar esse tipo de coisa, discutir e mostrar por meio da arte essas questões.;
O personagem criado por Elenildo tem uma história próxima à de Chalice. Homossexual, Éron mantém o fato em segredo e só como Velox consegue se aceitar. ;Éron não é assumido, mas, quando se transforma em Velox, ele voa livre.; A ideia de criar Velox já era antiga, mas o ponto final para a decisão foi o atentado contra homossexuais em uma boate de Orlando. ;Aquele ataque odioso me fez ver que era hora de lançá-lo. Já não podia mais esperar.;
ALTERS
Disponível, até o momento, apenas em inglês, as HQs de Alters podem ser adquiridas em versão digital em http://aftershockcomics.com/alters/. Cada edição custa US$ 3,99.
Três perguntas // Elenildo Lopes
Qual a importância de representar personagens assim nos quadrinhos?
Contar histórias por meio do universo e ótica desses personagens, como de Alters e do Velox, é essencial para que a sociedade veja, leia, discuta e entenda que não existe nada ali além do que todos somos. As diferenças biológicas, sexuais e de pensamento aqui são apenas um detalhe em um universo de semelhanças. É preciso entender e respeitar a diversidade como parte do que somos!
Como surgiu a vontade de criar o Velox?
Eu já tinha pensado no Velox havia anos, em sua base e propósito já com essa ideia de representatividade em mente, assim como todos os meus personagens, mas tinha escrito e definido poucas coisas. Em 2016, vi mais claramente que rumo ele seguiria e seus poderes. O Velox esperava o momento certo para sair da gaveta. Então, aquele ataque odioso em Orlando me fez ver que era hora de lançá-lo. Já não podia mais esperar.
O que você espera que as pessoas possam ;aprender; com o personagem?
Possam aprender a respeitar e aprender que a diferença faz parte da nossa natureza e a nossa sociedade e que precisamos de representatividade justamente para isso. A ignorância é o câncer da humanidade. Mas quando temos representatividade e discutimos como sociedade, por meio de várias formas, podemos evoluir.
"A ignorância é o câncer da humanidade. Mas quando temos representatividade e discutimos como sociedade, por meio de várias formas, podemos evoluir"
Elenildo Lopes, quadrinista