Talvez nem percebemos, mas estamos constantemente nos diferenciando. No ambiente profissional, em família, no cotidiano atribulado e, principalmente, nas redes sociais, esbarramos com o desejo constante de nos definirmos. Um anseio em declarar nossas convicções políticas, condições sociais ou orientações sexuais. E somos julgados por elas. Muitas vezes, de uma forma diferente do que gostaríamos.
Assim, tornamo-nos branco ou negro, homo ou hétero, rico ou pobre, petista ou peemedebista. Com
direito a adjetivações autoimpostas ou sugeridas pelo outro: elitista, militante, enrustido,
conservador, intolerante, vitimista. Há quem morra por isso. Há quem mate por isso. Há quem
apanhe por isso. Há quem se vanglorie por isso. Criou-se uma cultura de segregação, de nichos,
de grupos ideológicos. Há tempos, porém, ninguém lembra que apesar de todas essas
características (ou acusações) somos igualmente humanos. E, portanto, deveríamos nos respeitar.
Ou não?
O humanismo certamente transgride esse conceito restritivo de nos vermos enquanto humanos, até
por ser um termo empregado nas mais diversas áreas do conhecimento. Filosofia, política,
psicologia, antropologia, história, entre outras, têm algo a dizer sobre o humanismo. Mas, se
for possível traçar um consenso, seja qual for a premissa em questão, dificilmente não faríamos
um bom uso das lições do pensamento humanista em prol do convívio social.
Embate político e social
O deputado Jair Bolsonaro, apontado por muitos como anjo da guarda e por tantos outros como o
próprio anticristo, admite a divisão ideológica na qual estamos afundados, mas faz questão de
culpar a gestão petista: ;Tivemos anos de política governamental de luta de classes. Como vou
conquistar e dominar? Dividindo! Aqui no Brasil é luta de homem contra mulher, branco contra
negro, homo contra hétero, pai contra filho, rico contra pobre, Norte contra o Sul.;
Ainda no embate sobre a condução da política nesse panorama desumano, Bolsonaro voltou a
criticar o governo Dilma Rousseff por meio de um exemplo: ;Ela esteve na ONU e disse que o
Brasil estava de braços abertos para os refugiados. Não é assim! Você não pode abrir as
fronteiras do seu país para entrar gente à vontade aqui. Quem são essas pessoas? Poderão ser
inseridas no mercado de trabalho ou vamos apenas importar mais um problema social?;.
Diante da colocação, a reportagem imediatamente perguntou ao parlamentar se os questionamentos
não seriam justamente contraditórios a práticas humanistas, ao que ele respondeu: ;Nada a ver!
Foi humanitário Lula acolher Cesare Battisti aqui como preso político? Um cara com quatro
homicídios. Não pode ter gente com comportamento semelhante a esse nesses países todos que
estamos acolhendo? Em São Paulo, temos 30 mil haitianos sem qualquer controle. A maioria é gente
boa? Sim. Mas, uma minoria de gente ruim faz uma desgraça para toda a sociedade.;
Do outro lado da rua
;Há um crescimento dos discursos de ódio na política, no âmbito religioso, nos meios de
comunicação e em outros espaços de reprodução de narrativas, que acaba impactando na vida
cotidiana das pessoas. Isso é muito ruim;, observa o deputado Jean Wyllys que, assim como
Bolsonaro, enxerga a segregação que aparta os brasileiros. Certamente, por motivos diferentes.
;Ser diferente;, inclusive, permeia o discurso do parlamentar baiano. Questionado se os
políticos não andam esquecendo essa premissa de sermos todos humanos, antes de qualquer
peculiaridade, Jean esclarece: ;Somos igualmente humanos, e somos também diferentemente humanos.
A igualdade deve ser entendida como antônimo da desigualdade, e não da diferença. Eu quero viver
num país onde a diferença seja respeitada e inclusive celebrada;.
O jornalista e blogueiro Leonardo Sakamoto, autor de O que aprendi sendo xingado na
internet, concorda e acredita que o principal desafio talvez esteja justamente na
aceitação daquilo que nos parece diferente: ;O sentimento de empatia é dos mais difíceis. Uma
empatia real, de se colocar no lugar do outro. Chegar ao ponto de dizer ;eu posso discordar
dessa pessoa, mas acredito que ela mereça usufruir dos mesmos direitos que eu;;. Um ponto ainda
distante, vide as expressões de repulsa que ocupam as as redes e o dia a dia.
Bolsonaro, Jean e Sakamoto conhecem como poucos a profundidade da incompatibilidade de gênios
que nos cerca. Acabaram se tornando figuras proeminentes dessa polarização, justamente por
representarem particularidades ideológicas contraditórias, como o conservadorismo religioso e os
direitos da comunidade LGBT. Ao assumirem as respectivas convicções, são expostos ao movimento
contrário. Ferozmente xingados e agredidos, ilustram muito bem o título desta reportagem: ;Por
onde anda o humanismo, afinal;. Aliás, nunca foi tão oportuno responder à indagação.
// A percepção de cada um
A reportagem entrou em contato com nomes expressivos do meio cultural em diferentes áreas,
questionando: "O que lhe vem à mente quando pensa em humanismo?"
Beth Goulart, atriz
Marcelo Bonfá, músico
Camila Márdila, atriz
Otávio Müller, ator
Marcelo Calero, ministro da Cultura
Denise Fraga, atriz
>> Quatro perguntas // Sérgio Vaz
O poeta Sérvio Vaz é considerado uma das principais vozes da cultura periférica nacional,
não somente por conta da contundência dos versos, mas igualmente em virtude das intervenções
nas comunidades, como a Semana de Arte Moderna da Periferia, ou por denunciar o descaso
público com setores considerados marginalizados. Ele segue conduzindo saraus pelas
periferias que passa e dando voz a quem não costuma ser escutado. Pelo menos, não do lado de
cá.
A partir da sua vivência, o que lhe vem à cabeça quando pensa em humanismo?
O respeito ao ser humano em sua total essência, não importando quem ou de onde ele é.
Estamos, então, propagando uma cultura de segregação em vez de aproximação?
Essa cultura existe desde sempre: dividir para dominar. Somos preparados para odiar uns aos
outros, e a gente nem se dá conta disso. Somos escravos de um mundo no qual nos dão a
sensação que somos livres, por isso não questionamos sobre a liberdade. Somos livres para
pensarmos apenas o que eles querem. E, nesta disputa por migalhas de pão, é preciso odiar a
concorrência.
Antes de sermos pobres ou ricos, negros ou brancos, não estamos esquecendo de que
somos humanos? Não seria esse o elo que nos une, mas que anda abandonado?
Concordo plenamente com isso. Vivemos em confronto uns com os outros justamente por falta
de humanidade. Tornamo-nos apenas números de estatísticas. Um número no RG e no CPF e um
número na lápide para ser esquecido. Perdemos a vergonha de sermos carrascos daqueles que
não concordam com nossas opiniões.
De que a maneira a poesia pode auxiliar nessa busca pelo respeito ao próximo?
Creio que a poesia não nos deixa enlouquecer e, de alguma forma, nos humaniza. A poesia tem
o dom de nos lembrar quem somos, e que amar a vida e o próximo é amar a si mesmo. E isso que
digo não tem nada a ver com religião, mas com humanidade.
Assista ao vídeo e responda: você se levantaria?
[VIDEO1]
>> A edição impressa contou ainda com artigo de Rafael Ruiz, doutor em história
social pela USP, e com depoimento de Adriano Holanda, pós-doutor em psicologia pela UnB
e autor do livro Fenomenologia e humanismo - Reflexões necessárias