Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Bernardo Carvalho: Toda relação amorosa tem um pouco a questão do poder

Em 'Simpatia pelo demônio', autor reflete sobre a passagem do tempo e a violência das relações humanas

Durante uma estada em Berlim, em 2011, enquanto gozava de uma bolsa de residência, Bernardo Carvalho começou a tomar notas para um futuro livro. A intenção era fazer uma peça de teatro, mas o projeto ficou guardado nos caderninhos. Há alguns anos, Carvalho revisitou as anotações e relacionou os pensamentos de 2011 com a crise pela qual passava.

Aos 55 anos, o escritor se deu conta de que já não vivia as paixões e o amor como na juventude. "Tive uma crise de meia idade ao perceber que tem que haver uma mudança em relação à administração do amor, da sexualidade, que você não vai se apaixonar como se apaixonou na adolescência", conta. "A ideia que a crise de meia idade te dá é que você está seguindo para a morte em vez de renovar com a vida. Essas coisas me puseram num estado de urgência, de sensibilidade para o mundo". Dessa urgência nasceu o 11; livro do carioca, duas vezes vencedor do Prêmio Jabuti com os romances Mongólia e Reprodução.

Simpatia pelo demônio é um livro sobre a violência nas relações humanas, incluindo aí os relacionamentos afetivos e sociais. Para falar disso, Carvalho criou Rato, sujeito de meia idade, observador de uma agência internacional que se apaixona por um homem perverso e manipulador intitulado Chihuahua. Acostumado a participar de operações em zonas de guerras e de luta contra o terrorismo, Rato parece ser o lado forte da relação, mas engana-se o leitor que se deixar fisgar por aparências. Pai de uma menina e egresso de um casamento encerrado, ele prefere a vulnerabilidade de uma nova paixão ao recolhimento e à precaução. Assim, se deixa encantar pelo Chihuahua e, mesmo ciente das consequências, mergulha no relacionamento.

Como a contemporaneidade te pauta?
Por mais que tenha vontade de me indispor com o contemporâneo, para mim, o que interessa é estar o tempo inteiro me indispondo com o que está à minha volta, com o meu tempo, não me sentir adequado, isso é importante como paradigma literário. Ter um desconforto em relação ao presente é importante para mim. O elemento contemporâneo é fundamental, é o elemento onde eu escrevo. Ao mesmo tempo que tem o meu mundo, o mundo à minha volta, tem uma vontade de criar uma diferença em relação a esse mundo, criar um desconforto. E como sou um escritor de hoje, só posso escrever sobre meu tempo

Podemos falar que o livro é sobre as relações de domínio?
Acho que sim. Toda relação amorosa tem um pouco a questão do poder. Em toda questão sexual e afetiva, querendo ou não, o poder está embutido. Nas relações sexuais, sobretudo nas fantasias sexuais, a coisa do poder está muito presente, da pessoa que se submete e da outra que domina, isso faz parte das perversões, das taras. No caso do livro, é uma relação perversa na qual esses papeis estão um pouco invertidos e se confundem. O Chihuahua parece o mais frágil, mas ele rege a perversão. E o Rato se submete a isso, mas sabe que está se submetendo. E há uma ambiguidade porque vida e morte são misturadas também.

Você fala da guerra, que é naturalmente violenta, mas também, do quanto o amor pode ser violento. O ser humano não tem como escapar da violência?
Acho que não, está na gente. O problema é quando você começa a querer disfarçar com essa coisa meio capenga das boas intenções. Lógico que todo mundo quer a paz, o bem, mas se você não enfrenta a violência, não entende o que é, você vai tentar tapar o sol com a peneira e as consequências vão ser muito piores. É interessante pensar por que tem um negócio hoje no mundo que faz com que a violência e as opressões estejam muito ligadas às questões sexuais, às diferenças sexuais, às mulheres. A figura de bode expiatório hoje é muito a mulher e o gay. O inimigo dos sistemas opressivos hoje é a sexualidade do outro, a sexualidade como diferença, o prazer do outro.

[SAIBAMAIS]Você mesmo diz que a suposição de que haja aspectos do espírito humano que devem ser mantidos na sombra e em silêncio é incrível. Simpatia pelo demônio é, um pouco, sobre esses aspectos também?
Acho que sim. Não tenho religião, mas tenho uma relação com a literatura que é de fé, quase religiosa: aquele é um espaço sagrado de liberdade. Na literatura, você tem a possibilidade de ter uma liberdade absoluta, você não está matando ninguém, esfaqueando ninguém, oprimindo ninguém, mas tem ali uma possibilidade de liberdade de reflexão e representação muito importante porque é um lugar no qual você pode refletir sobre coisas que estão no mundo


SERVIÇO
Simpatia pelo demônio
De Bernardo Carvalho. Companhia das Letras, 232 páginas. R$ 44,90.

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