Clarice Lispector é um claro enigma a ser decifrado eternamente. A sua obra suscita infinitas leituras. Depois da biografia Clarice, de Benjamin Moser, a coletânea Contos completos, organizada pelo mesmo autor, colocou a escritora, definitivamente, no circuito internacional. Publicada primeiro nos Estados Unidos, a obra foi selecionada como uma dos lançamentos mais importantes de 2015. A versão brasileira está nas livrarias desde o início do ano e permite uma visão panorâmica das narrativas curtas nas quais Clarice era uma mestra.
Em 1976, Clarice foi escolhida para ganhar o Grande Prêmio de Literatura da Fundação Cultural do DF. Recebeu CR$ 70 mil, um valor considerável para a época e para a situação de penúria vivenciada pela escritora, desde que se separou do diplomata Maury Gurgel Valente. Clarice ficou, simultaneamente, felicíssima e aflita. Felicíssima pela agradável surpresa; e aflita porque ficava pensando nas crianças necessitadas.
No dia que recebeu a notícia do prêmio, Clarice concedeu uma longa entrevista ao escritor e jornalista Edilberto Coutinho. A conversa está registrada no livro Criaturas de papel (Civilização Brasileira/INL ; MEC), fora de catálogo. Publicamos, a seguir, trechos da entrevista, em que Clarice fala sobre o prêmio, a situação de mãe e de escritora, a relação com os bichos, a morte e o futebol. (Severino Francisco)
;Fiquei contentíssima. Não esperava. Uma completa surpresa. Mas logo veio uma depressão muito forte. Eu, ganhar esse dinheirão e tantas crianças que necessitam, por aí...; O comentário foi de Clarice Lispector, ao receber o grande prêmio ; CR$ 70 mil ; da Fundação Cultural do Distrito Federal (conjunto de obra, 1976).
;Por que não faz uma doação a essas crianças?;. Ela não tarda na resposta: ;Porque os adultos ficariam com o dinheiro. Olha aqui, eu já tentei reformar o mundo. Por isso fui estudar direito. Me interessava pelo problema das penitenciárias. Mas desde que recebi a notícia do prêmio, não consigo pensar senão nisto: crianças morrem de fome, crianças mortas de fome. Mas quem sou eu, meu Deus, para mudar as coisas?;
Vai atender um telefonema, diz alguém que ligou de Brasil qual o hotel onde quer ficar, ;um quarto com duas camas, por favor;. Quer saber qual é o programa. ;Dança flamenca? Gosto muito;.
Assegura que o prêmio não a afeta, do ponto de vista literário: ;Continuarei, assim que voltar dessa viagem. Aliás, o meu trabalho foi interrompido por outra saída do Rio;.
Serviço
Todos os contos
Clarice Lispector/Ed. Rocco 656 páginas/R$ 59