Eucanaã Ferraz não lembra exatamente, mas tem quase certeza: foi Waly Salomão quem o apresentou a Adriana Calcanhotto durante uma festa, há muitos anos, talvez mais de uma década. A amizade deu liga. ;Tínhamos um grande amigo em comum, que era o Antonio Cícero, e fomos ficando amigos. Fui muito próximo de Susana Moares (morta em 2015), a companheira da Adriana, então a amizade foi se estreitando. Temos muitos amigos em comum, interesses comuns, autores comuns na nossa vida, então estamos sempre muito próximos um do outro;, conta o poeta. A proximidade foi determinante quando a editora Bazar do Tempo fez a proposta de editar um livro com as letras das músicas de Adriana. A cantora e compositora não vacilou, queria Eucanaã Ferraz à frente de tudo, da organização ao prefácio.
Com a postura de um poeta, Ferraz passou então a compilar as letras como se fossem poemas. Queria tirá-las do contexto sonoro e realocá-las num universo no qual adquirissem outra dimensão, a da poesia. Sem o som e sem a orientação da sequência organizada das faixas do disco, o leitor deveria se deparar com uma escrita redimensionada. O resultado está no livro Para que é que serve uma canção como essa?, que o poeta lança em parceria com a compositora. ;Queria que a poesia escrita aparecesse mais que a cantada e a primeira medida que achei que devia tomar era não seguir uma ordenação pelos CDs. Então optei por separar o livro em blocos temáticos;, avisa Ferraz. O livro reúne letras compostas nos últimos 25 anos, incluindo 18 composições inéditas.
O prefácio é uma introdução de 41 páginas ao universo poético e musical de Adriana Calcanhotto. É uma apresentação, mas também uma revelação de como o poeta enxerga o trabalho da compositora. Adriana, ele explica, é herdeira de uma tradição brasileira ancorada em movimentos como Tropicália e bossa-nova. Capaz de fundir o popular e a experimentação sem se isolar em uma linguagem hermética, a compositora conseguiu um público considerável e uma comunicação bastante eficiente. ;O que mais define o trabalho dela talvez seja a liberdade de caminhar por temas da tradição e, ao mesmo tempo, estar muito atenta à poesia contemporânea, à arte de vanguarda;, avalia o poeta. ;É um trabalho que, ao mesmo tempo, tem muito de pesquisa formal e todas as facilidades da canção popular. É uma artista cuja obra tem apelo popular, toca no rádio.;
Ferraz dividiu o livro em cinco módulos como forma de propor um passeio pelas temáticas tratadas nas letras. Assim, as questões amorosas estão em Você, e o momento presente, em Agora. Ambos são recorrentes nas composições de Adriana, talvez um pouco mais frequentes que outros temas. Em Onde, o poeta quis dar destaque às paisagens , lugares e cidades. ;É essa Adriana muito atenta às paisagens, ao mundo. Esquadros é um pouco isso. eu` ando pelo mundo; é muito a cara dessa seção, é a Adriana caminhando;, avisa Ferraz. Olhar traduz a maneira como a compositora encara o mundo e as pessoas e Verso reúne letras que tratam da própria canção. ;É uma questão-chave da poesia contemporânea;, acredita o organizador. ;Ela reflete sobre ela mesma e sobre a escrita como se fosse um pouco poesia e crítica da poesia simultaneamente. É uma tradição da canção, a canção que fala da canção.;
Como Adriana, Eucanaã Ferraz se diz um contemplador do mundo e, por isso, faz questão de chamar a atenção para o projeto gráfico do livro que, segundo ele, é clássico e tem ;um charme, uma bossa, uma vibração;. ;Eu, como Adriana, sou amante dos objetos e das coisas, da beleza material das coisas;, avisa.
Para que é que serve uma canção como essa?
Letras de músicas de Adriana Calcanhotto. Organização: Eucanaã Ferraz. Bazar do Tempo. 192 páginas. R$ 48.
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