Djanira costumava dizer que sua pintura não era ingênua, mas ela era. Por trabalhar com temas muito populares, a artista foi, durante décadas, identificada como naif, mas a classificação provocava mais caretas e interrogações do que certezas e sorrisos. Djanira da Motta e Silva não frequentou academias de belas artes, gostava de temas do cotidiano, fazia intenso uso da cor e pintava um certo Brasil (que podia ser alegre ou sofrido), porém prestava a atenção demais no plano da tela para carregar o título de naif.
Em Djanira: Cronista de ritos, pintora de costumes ; Coleção Museu Nacional de Belas Artes, em cartaz no Museu dos Correios, é possível compreender o processo de criação da artista e, sobretudo, a maneira como planejava a obra, um percurso mais ligado às técnicas formais de composição do que à intuição que guia os naifs. Nesse conjunto de 120 obras selecionadas pela curadora Daniela Matera, fica também um vislumbre de quem foi essa artista, mulher de temperamento forte, pintora tardia que aprendeu a manejar o pincel depois de uma enfermidade e manteve o pulso graças ao convívio com os maiores nomes da arte brasileira das décadas de 1930 e 1940.
As obras expostas pertencem ao espólio doado pelo marido ao Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (MNBA) após a morte da artista, em 1979, e fazem um passeio pelos temas que costumavam pautar seu universo criativo. Além das pinturas, a curadora incluiu gravuras, desenhos e cadernos de anotações e de viagem, já que Djanira era uma grande viajante e gostava de visitar lugares para depois registrá-los. ;Tentei tratá-la como antropóloga, ela experimentava a terra e colocava na tela;, diz Daniela, ao lembrar que, na exposição, há toda uma série sobre os índios canela, do Maranhão, feita na década de 1950. ;Se ela queria pintar os índios, por exemplo, ela ia até eles.;
Daniela quis inserir os cadernos porque neles estão claros os caminhos traçados pela artista. ;Assim, você consegue perceber a evolução dela, quais eram as dúvidas e as questões;, explica a curadora. ;A obra é extremamente moderna, a composição é por cor, ela planificava a tela. Ela não era naif.; Os trabalhos têm tom de crônica do cotidiano marcada por olhar lírico e onírico. Às vezes, a cor se impõem, como em Vista da Baía de Guanabara tomada de Santa Teresa. Outras vezes, a forma grita, caso do geométrico Trabalhadores de cal, no qual evoca, em tons cinzas, a dureza desse tipo de trabalho.
O universo de sonhos de Djanira está presente em boa parte das obras, sejam elas sobre trabalho, fé, lazer, sejam paisagens, quatro dos temas que pautam a mostra. E eles não são um acaso na trajetória da artista. A história da garota nascida em Avaré, no interior de São Paulo, tem um caminho particular na história da arte brasileira. Menina, ela trabalhou como boia-fria para sobreviver. Abandonada na casa de vizinhos, em Santa Catarina, aos 2 anos, passou boa parte da infância à espera que os pais retornassem. Depois de 14 anos, desistiu. Para não ser mandada embora, trabalhou em lavoura, pasto e como cozinheira antes de aprender a costurar e conseguir tocar a própria vida.
Solidão
Foi modista, costureira, chapeleira, mas seu destino começou mesmo a ser traçado por uma doença. Aos 23 anos, já vivendo em São Paulo, acabou internada em um sanatório por conta de uma tuberculose. Para fugir da solidão durante o tratamento, começou a desenhar. Na época, as perspectivas de cura da doença não eram as melhores, mas Djanira sobreviveu e resolveu mudar para o Rio de Janeiro.
No bairro de Santa Teresa, alugou uma casa e abriu uma pensão, na qual mantinha também um ateliê de costura, uma forma de complementar a renda. Nos intervalos, desenhava e pendurava os pedaços de papel pelas paredes do ateliê. Foi ali que o romeno Emeric Marcier percebeu, ao ver os papeizinhos, que estava diante de uma artista. Djanira rejeitava o rótulo. O que fazia, ela acreditava, não podia ser arte porque isso era reservado a pessoas que sabiam muitas coisas desconhecidas para ela. Aos poucos, a pensão começou a ser frequentada pelos artistas de um modernismo tardio que ficou conhecido como ;retorno à ordem;. Na capital fluminense, o movimento abarcava nomes como Milton Dacosta, Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Victor Brecheret e Vicente do Rego Monteiro, além de um grupo sólido de mulheres como Maria Helena Vieira da Silva, Maria Leontina, Hilda Campofiorito e a própria Djanira.
Esses artistas ocuparam a cena carioca no período entreguerras e investiram numa arte mais livre. Se as vanguardas modernistas do início do século 20 protagonizaram sérias rupturas, o pessoal do retorno à ordem queria experimentar sem o compromisso com a ruptura total. Os valores da cultura nacional continuavam fortes ; e Djanira era mestre em incorporar as referências brasileiras ;, mas a pintura não precisava ser tão acadêmica. Sob essa perspectiva, foi possível o surgimento de figuras como Djanira. Ela nunca teve uma educação artística formal, mas absorveu alguns elementos acadêmicos graças à convivência com gente como Milton Dacosta e Marcier.
Havia muitas mulheres nesse movimento ; e todas, hoje, fazem parte de um cobiçado mercado de arte que movimenta leilões no país inteiro ;, mas Djanira foi a mais produtiva e conhecida. ;Ela sobressaiu;, conta a curadora e historiadora Denise Mattar. O fato de não ser casada com nenhum grande nome da pintura na época ; o primeiro marido, maquinista da Marinha, morreu em um submarino destruído pelos alemães ; talvez tenha ajudado a projeção do nome. Maria Leontina era mulher de Dacosta, Hilda Campofiorito era casada com o pintor Quirino Campofiorito e a portuguesa Maria Helena Vieira da Silva imigrara para o Brasil em companhia do marido, o também artista Arpad Szenes.
Os nomes dos cônjuges, de certa forma, ofuscaram um pouco os artistas. Djanira se casou novamente, na década de 1950, com o poeta José Shaw da Motta e Silva. Nessa época, já era artista conhecida, cujas obras integraram exposições importantes, como Arte moderna, no Museu de Arte Moderna de Paris, e Pintura moderna brasileira, na Royal Academy of Arts, em Londres.
A moça de Avaré também foi extremamente produtiva. Pintou muito, fez cartazes para espetáculos, murais para instituições e uma grande quantidade de quadros, gravuras e desenhos. Só no MNBA, seu acervo contabiliza um total de 813 obras. Djanira nunca estudou arte formalmente. Chegou a fazer aulas no Liceu de Artes e Ofícios, mas não gostou. Conviver com a boemia artística carioca no fim dos anos 1930 foi uma escola, mas era em campo que a artista se sentia livre para pintar.Djanira: Cronista de ritos, pintora de costumes ; Coleção Museu Nacional de Belas Artes
Exposição de Djanira. Curadoria: Daniela Matera. Visitação até 18 de setembro, de terça a sexta, das 10h às 19h, e sábados e domingos, das 12h às 18h, no Museu Correios (SCS Quadra 4, Bloco A, 256, Ed. Apolo).
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