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Em entrevista ao Correio, Leandro Karnal diz que o Brasil tem solução

O historiador falou sobre religião, política, ética e o individualismo do mundo moderno

O historiador Leandro Karnal acorda cedo, ainda escuro, para trabalhar, e anda com uma agenda cheia de compromissos e palestras, como a marcada para hoje em Brasília. Em meio a esse turbilhão, em média, com sete entrevistas por dia, o professor doutor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) conversou por e-mail com o Correio. Atencioso, não deixou uma pergunta sem resposta. De religião a contemporaneidade, nada ficou por comentar. Confira.

ENTREVISTA/ Leandro Karnal

Deus existe?
Não. Mas a fé das pessoas existe e ela constrói sentidos, prédios, afetos, libertações e repressões. Religião é um fato real.

Há religiões que valorizam a figura do diabo como contraponto a Deus. Mas como um anjo caído pode rivalizar com o Ser Supremo? Ele não é do segundo escalão? Essa dualidade não seria apenas demagógica?
É uma herança dos maniqueísmos (divisões entre deus do bem e deus do mal) do Oriente. Não seria inteligente de um ser como um arcanjo lutar contra um ser onisciente e onipotente. Samambaia, na grande Brasília, não poderia declarar guerra à Otan, maior aliança militar do mundo. A distância de poder entre Samambaia e a Otan é menor do que entre Lúcifer e Deus. Não diria demagógica, mas a divisão é uma compreensão histórica que evidencia que a ideia de um Deus absoluto ainda não estava formatada quando foi criada a figura de um demônio.

A religião faz bem ou faz mal para o homem moderno? Na Idade Média, ela servia para dominar e para explicar o ;inexplicável;, como os fenômenos naturais. E hoje, a religião é um instrumento político?
A religião é um signo aberto. O que significa isso? Ela pode servir para o bem e mal; aliás, ela ajuda a definir o que seria bem e mal. Vejamos: o MST tem relação com um esforço da Igreja Católica e da Pastoral da Terra. É a Igreja a favor da divisão de terras. A TFP, inteiramente contrária a isso, tem relação com um esforço da Igreja Católica. Há mulheres que apanham porque acham que é um carma religioso e há mulheres que denunciam o espancador porque encontram força na religião. Há padres e pastores que salvam crianças e administram obras sociais vitais. Há padres e pastores pedófilos. Religião e seus agentes não são nada em si, mas signos abertos.

No mundo tecnológico, em que o homem cada vez mais se transforma numa bolha de sentimentos, os algoritmos, os robozinhos das empresas de internet por trás da nossa timeline cada vez mais influenciam no nosso cotidiano,ditando até nosso humor. Isso é a automatização humana?
Questão importante e ampla. Seria a tecnologia? Um operário de uma linha de montagem fordista no início do século 20, fazendo trabalho repetitivo e automático, seria menos robô? A tecnologia, em si, é neutra. O homem é que faz diferença. Há também os que estão lendo Nietzsche graças à rede e descobrindo um sentido crítico novo e denso. Mas, sim, nunca estivemos tão ligados a algoritmos.

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Por que o humanismo cada vez mais se distancia dos discursos modernos? O homem está se transformando numa manada que simplesmente curte, comenta e compartilha em rede social?
Os homens da Idade Média não eram mais livres pela inexistência do computador. Sempre penso, como disse, que a técnica é neutra, mas cada um de nós se apropria dela de acordo com seu universo. Meus alunos de 2016, na Unicamp, não são menos críticos do que eram há 20 anos. O gosto pela manada talvez seja mais forte na Coreia do Norte (onde a população nem tem energia elétrica) do que em Nova York.

Aproveito a entrevista para falar de outras questões que o senhor conhece tão bem, como a formação dos Estados Unidos, tema de um livro seu. Qual é a diferença básica entre a criação da nação mericana e a da brasileira? Muitos culpam a indolência portuguesa por nossa situação. O senhor acredita nisso?

Os portugueses foram pioneiros na constituição de um império marítimo. Considerando a entrega de Macau após Hong Kong, também foram os últimos. Indolência é um preconceito construído contra Portugal e a favor de uma civilização mais racional e desenvolvida ao Norte. Quase sempre traduz racismo ou etnocentrismo. A explicação ;colônias de povoamento e exploração; é ainda pior, apesar do sucesso que fez há alguns anos entre o senso comum e os livros didáticos. A colonização portuguesa deve ser entendida em chaves distintas sobre a religião, o meio encontrado, a questão do Estado Ibérico, a mestiçagem e muitas outras questões.

O problema do Brasil seria a educação? Da metade do século 20 para cá, pouco se investiu em educação, em cultura, uma estratégia de grupos políticos de diferentes matizes ideológicos, em manter o eleitorado fiel. A elite brasileira está preparada para a modernidade, ou somos um Estado Islâmico tropical?
No Estado Islâmico há grande ênfase para os meninos frequentarem o madraçal, a escola religiosa. Este impulso é maior do que entre nós. A educação brasileira deu saltos. Houve uma imensa inclusão numérica, uma discreta redução do analfabetismo (resistente entre adultos e diminuindo entre jovens) e uma universidade bem mais inclusiva do que há 50 anos. Em geral há um declínio de qualidade em meio a um aumento de quantidade. O declínio médio atinge professores e alunos. Há a falha do Estado e há a falha das famílias. Vincular programas sociais como Bolsa Família à escola é boa iniciativa. Podemos criar voluntariados para alfabetização capilarizada de adultos. A Constituição de 1988 deu maiores verbas para educação. Nem creio que os políticos combatam uma boa escola. Acho que muitos políticos nem sabem o que viria a ser uma boa escola. A exposição do Congresso, em períodos mais recentes, mostra um grupo expressivo usando mal a norma culta, com pouco senso crítico e claudicante, no domínio de uma base comum de conhecimentos sobre o país. Talvez não seja uma ideia racional, mas apenas espelho: como vou valorizar boa escola se nunca estive numa e jamais li algo sobre ela?

Se o senhor fosse convidado para definir diretrizes na área educacionalbrasileira, quais seriam as suas primeiras diretrizes?

Um pouco menos de ênfase na educação superior e mais ênfase na básica. Uma política de formação continuada de profissionais de educação, inclusive com profissionalização das direções e coordenadorias. Campanhas que estimulassem voluntariado entre jovens universitários para alfabetização. Obrigação de programas culturais em rádios e televisões. Campanhas para que homens públicos fossem vistos em escolas, segurando livros, assistindo aulas de quando em vez para criar exposição midiática à trincheira da educação: a sala de aula. Parcerias com empresários responsáveis e preocupados com as escolas. Dignidade absoluta para os profissionais da educação, trabalhadores como todos no Brasil, mas com missão de fazer futuro. Por fim, parcerias e verbas para a educação fora da sala: filmes, concertos, festivais, viagens culturais e acesso a computadores.

Por que, na sua opinião, cultura não é prioridade no Brasil?
Acho que existe muita cultura e interesse nela, mas cultura com pouca elaboração estética e pouco senso crítico. Todos os brasileiros estão imersos em cultura informal quando ligam rádio e tevê, quando observam moda e músicas, quando andam de ônibus pela cidade. Falta estimular uma cultura que retire cada um da zona de conforto, que apresente uma novidade ao cérebro e não apenas reforce estereótipos e preconceitos. Precisamos vencer dois modelos de cultura na verdade: uma elitizada, que acha que só a europeia formal é válida, e uma popularizada que acha que quanto mais vulgar, mais popular será a cultura. São dois equívocos.
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A política está infestada de agentes sem nenhuma moral ou ética; esses macunaímas zumbis são representantes de uma sociedade arcaica, hipócrita etc. Mas o que o país está passando hoje é saudável, é necessário esse expurgo. Ou tudo não passa de um espasmo e as coisas vão ficar debaixo do tapete, como a gente sempre faz? O Brasil tem solução?
Toda sociedade viverá sempre com o traço da dimensão trágica da existência. Cada uma paga o preço disso. O Brasil tem várias soluções. Acho que a corrupção não é a ação de um ;zumbi;, mas de um ser bem vivo, ativo, inteligente e bem inserido numa determinada posição. A dualidade Brasil moderno e ético vs Brasil arcaico e corrupto é algo a ser desconstruído. Havia até um discurso de que a grande corrupção vem dos grotões. Na verdade vimos que ela está inserida em plena modernidade financeira e corporativa. Não sabemos sobre o futuro, mas sou bastante otimista neste momento.

E a intolerância? Por que chegamos ao ponto da banalização de estupros coletivos, dos ataques homofóbicos, do desrespeito à mulher? Por que tanto ódio, tanta ignorância? Quais, na sua opinião, seriam o diagnóstico e o remédio?

Estamos mais submetidos à diversidade hoje do que há 100 anos. Isto incomoda muita gente. O preconceito é filho do medo e de situações culturais, sociais e psíquicas. Para ajudar a superá-lo, precisamos aumentar o consenso via educação e a coerção via lei. Exemplo concreto: uma lei constitucional que tornou o racismo crime inafiançável, mais uma educação que tornou obrigatório o estudo da África e da nossa matriz africana, não resolveram o problema do racismo, mas ajudaram a dar passos para isto. Falta o mesmo esforço no campo do gênero. Creio em consenso e coerção. Os dois bem dosados podem estimular uma guinada na cultura do estupro e do racismo e na superação da homofobia. Mulheres negras e pobres são o elo mais frágil de toda a cadeia.

Com as novas regras eleitorais, o financiamento privado para os partidos secou, ou seja, fechou-se a porta para que o dinheiro paralelo vindo do crime organizado e/ou de instituições religiosas pouco convencionais financiem candidatos. Isso pode criar (ou ampliar) bancadas fundamentalistas ou ligadas à contravenção nas próximas legislaturas. O que pode ser feito?
O Congresso (e cada Casa Legislativa) é a cara do Brasil. Há uma parte do Brasil que é religiosa e há deputados religiosos. Não é algo ruim. Seria autoritário um congresso que excluísse deputados identificados com a causa gay ou com a causa neopentecostal. O financiamento é um problema mundial. A Lei da Ficha Limpa e mais a proibição de doação de grandes empresas foram passos para melhorar isto. Só se aprende a votar votando. A democracia é um exercício eterno de erro e acerto, de aprendizado e debate. Acho que estamos avaliando nacionalmente esta questão. Será curioso ver o resultado da próxima eleição municipal.
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Tem algum paralelo na história sobre a situação política vivida hoje no Brasil?
Sim. Em 1935, divididos os polos da AIB e ANL. Em 1964, com cisão de campos entre conservadores e a esquerda em geral. A polarização é um fato no Brasil. Mas o eleitorado é, geralmente, centrista. A massa dos brasileiros não é de direita ou de esquerda, apesar desses grupos serem muito barulhentos e fazerem crer que representam o verdadeiro Brasil. O que está diferente hoje é a falta de horizonte e de esperança.

Falamos tanto de ética, de moral, de caráter... Mas essas palavras parecem que não se internalizaram em nossa sociedade. Por quê?

Porque temos imperativos categóricos práticos. Somos dados ao individualismo ou, como dizia cronista colonial, somos pouco repúblicos. Se não encontrei vaga, uso a de idosos, mesmo tendo menos de 60 anos. Meu problema imediato fica sobreposto à norma. Somos intérpretes da norma, hermeneutas jurídicos permanentes. Sou contra a podridão do governo, mas ando pelo acostamento ou compro recibos falsos para o imposto. Acho o deputado X ruim, mas ele arranja Y para mim. Nossa ética falece na demanda individual e no cosmos familiar. Isso pode mudar, como mudou nossa relação com o cinto de segurança. O processo é possível, mas não estará pronto nas eleições de 2018.

Conhecimento, trabalho e tempo no mundo contemporâneo
Palestra com o professor Leandro Karnal, na Hípica Hall (Setor Hípico Sul, Área Especial, lt 8, ed. Hípica Hall), às 19h. Ingressos no local ou no site eventim.com.br
(R$ 150 e R$ 230).


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