Cleary Wolters levou um susto quando assistiu Orange is the new black pela primeira vez. A personagem de Alex Vause, teoricamente, seria ela mesma. Corria a primeira temporada da série e Cleary já havia deixado a prisão, mas ainda estava em condicional. Trabalhava, porém ninguém do ambiente de trabalho sabia de seu passado como traficante e como namorada de Piper, a protagonista do livro de memórias que inspirou a série da Netflix. Primeiro, ficou desesperada. Vause não é exatamente um anjo. Na série, ela é capaz de dedurar a namorada e colocá-la em situações bem difíceis. Cleary ficou com medo que algum espírito vingativo se voltasse contra ela. E mais: que associassem o caráter de Vause ao seu. ;Quando a série começou, eu ainda estava em condicional, o que é, basicamente, uma luta intensa para não ver seu passado estampado num best seller do New York Times ou sendo adaptado para a ficção em uma série de TV;, lembra Cleary. ;Eu não podia dar um pio sobre minha conexão com a série para a maioria das pessoas, nem as pessoas do meu trabalho sabiam que eu tinha uma história tão colorida. Foi um período muito bizarro de minha vida.;
Passados três anos da estreia da série, ela resolveu contar a própria versão do que aconteceu na prisão, mas também entre ela e Piper. Out of orange é, também, um livro de memórias, e foi responsável por levar a autora a descobrir que era uma escritora. Quando sugeriu o livro à editora, imediatamente recebeu a proposta de escrevê-lo em parceria com um ghostwriter. ;Nem minha agente nem ninguém esperava que Alex fosse uma escritora. Quando criança, eu queria ser escritora. Na prisão, escrever me livrou de dificuldades. Escrevi três romances na prisão. Isso me deu um escape e apoio emocional num lugar em que uma catarse segura é difícil de ser vivida;, conta.
Cleary esperou completar a sentença para dar início ao livro e ela garante que a série não foi a responsável por desencadear o processo de escrita. Foi, na verdade, uma entrevista de Piper a um programa de televisão, em 2010, que motivou o livro. Compartilhar a própria história e revivê-la, sem vergonha, ajudaria a autora a preencher uma lacuna vivida durante os tempos da prisão. ;Eu queria ser parte da voz que conta uma história de crime e punição na América. Escrever foi acender uma velha chama. Então, a série foi ao ar, Alex chegou e a chama se apagou; conta Cleary, em entrevista ao Diversão. Veja como essa programadora de softwares virou escritora depois de ver a própria história estampada nas primeiras páginas dos jornais e em uma série de TV.
Cinco perguntas / Cleary Wolters
Por que escrever o livro e oferecer um outro ponto de vista?
Exatamente porque a personagem não era eu. De alguma forma, Alex tornou necessário para mim compartilhar Out of orange. Senão, eu carregaria todas as culpas dela, assim como as minhas. A história de Alex é ancorada em uma Piper ficcional ao mesmo tempo em que a Piper real e eu temos vidas convergentes. Eu sei que Alex é uma ficção, mas a audiência não pensa assim. O nome do show é o nome de um livro de memórias. Minha história, como a de Piper e de outros como nós, é real e serve a um propósito maior que o simples entretenimento. A cada vez que a experiência de uma mulher vem à luz assim, é uma espécie de vitória para todas as mulheres nas mesmas circunstâncias. E são tantas! Eu gosto de acreditar que alguém possa experimentar minhas memórias como uma luz no fim do túnel caso ainda esteja na barriga da besta. Foi exatamente o que senti em 2010, quando ouvi Piper na NPR, enquanto ainda estrava navegando no sistema judicial.
Você ainda se sente fragilizada pela série?
Se por frágil você quer dizer na defensiva, não. Estou acostumada às pessoas que pensam que a personagem da série e sua história vêm da minha própria realidade. Se a primeira impressão sobre mim vem de alguém que me importa, então eu a corrijo, especialmente porque a série assassina o caráter de Alex. Eu tenho que acreditar que ninguém lá fora vai me tomar como alvo para vingar Piper das coisas ruins feitas por Alex. Mas, às vezes, isso me preocupa.
O que você acha da série?
A primeira temporada foi difícil de assistir, foi uma experiência insana. A segunda foi menos estressante e mais divertida, já que Alex está mais ausente. A terceira foi totalmente decepcionante. A distância da realidade foi muito grande. A série perdeu a coragem e a intensidade da conexão humana oferecida pela proximidade com a realidade.
Piper leu seu livro? Você falou com ela? O que ela achou?
Sim, ela leu. Ela foi a primeira pessoa a quem pedi para ler. Sim, falamos sobre a série e ainda somos amigas. Eu fiquei feliz de ela não ter me esculhambado por eu ter colocado todas as nossas trapaças e momentos íntimos no livro. Mas acho que ela entendeu, não era uma coisa gratuita ou aleatória. Era necessário incluir isso, as emoções têm um papel muito grande nas nossas trajetórias.
Como é sua situação agora? O livro mudou a sua vida?
Minha vida é sinistramente calma. Trabalho no mesmo local há seis anos. E estou fazendo alguns desenvolvimentos de softwares muito interessantes, coisa de ponta. Mas também estou escrevendo. Publicar Out of orange preencheu uma enorme lacuna na minha vida e criou uma ponte entre meu passado e meu presente. Eu me sinto completa novamente e devo isso à escrita. O processo foi como uma cura. Alguns trabalhos doem muito. Mas passar por eles, trazê-los à luz e soltá-los me fez achar o caminho de casa.
Em algum momento a Netflix entrou em contato com você? E como você se sente em relação a isso?
Não, a Netflix nunca entrou em contato comigo. Eu esperava que eles entrassem e fiquei surpresa quando não o fizeram em 2014, quando revelei quem eu era à Vanity Fair. Teria sido um grande gesto, mas eu não esperava por ele. Eu gosto muito do que a Netflix criou. Eles inventaram uma plataforma para grandes talentos e programas que, de outra forma, poderiam nunca ter sido mostrados. Detesto imaginar o mundo sem House of cards, Orange is the new black e outas séries incríveis de outros países.
De Cleary Wolters.
Tradução: Edmo Suassuna.
Editora Fabrica 231.
304 páginas.
Preço: R$ 34,50.