O Brasil colônia era um território muito peculiar. Índios se uniam aos conquistadores por laços familiares como forma de garantir tratamento privilegiado. Numa lógica inversa, escravos libertos se vendiam novamente a senhores de engenho em troca de sustento. Eventualmente, também podiam comprar a própria liberdade e, com alguma sorte, encontrar ouro na região das Minas Gerais e enriquecer. Arrotar, defecar ou urinar em público eram práticas normais e os conteúdos dos penicos ia direto para ruas e praias. A palavra higiene sequer figurava no dicionário lá pelos idos do século 19. Cozinhas de casas pobres ou ricas eram lugares imundos. Médico na colônia? Bem, no início, lá por 1550, havia apenas um. Um luxo, considerando que em Lisboa, o número era de 57.
São curiosidades que, costuradas pela narrativa de Mary del Priore, formam uma espécie de história dos costumes sociais e intimidades do Brasil antes do império. Colônia ; Histórias da gente brasileira é o primeiro volume de uma tetralogia na qual a pesquisadora vai tratar dos quatro períodos da história brasileira sempre a partir de três perspectivas: a da terra e do trabalho, a do supérfluo e ordinário (entram aqui casa, comida e higiene) e os ritmos da vida que vão do nascimento à morte.
Colônia tem muito de pesquisas já realizadas por Mary ao longo quase três décadas e mais de 40 livros publicados, mas também tem novidades. A autora é especialista em intimidades, especialmente aquelas ligadas ao corpo e aos relacionamentos ; seu Histórias íntimas (2011) vendeu mais de 100 mil exemplares ;, e muitas delas estão no livro. Mas é, sobretudo, na parte dedicada às práticas de trabalho (no campo e na cidade) e na organização social que Mary traz lampejos de novidades. ;Trabalhei com uma coisa que é bastante inédita que é a mobilidade dos grupos sociais no Brasil. Isso é pouco trabalhado na universidade;, explica.
Com pesquisa em arquivos e documentos, a historiadora aponta como a mobilidade de classes ; inclusive para ex-escravos, mulatos e crioulos ; era um fato tanto no período colonial quanto no império. ;Há ex-escravos que enriquecem e passam a ter mais escravos. Ou que vão fazer estudos no exterior e voltam professores. E nós somos descendentes dessas pessoas. A dualidade, muito explorada na universidade, de dominados e dominantes, senhores e escravos, procurei quebrar e avançar no sentido de mostrar que as classes C e D sempre existiram no Brasil e que isso não é nenhuma novidade, que basta olhar os documentos para puxar o fio dessa meada; avisa a historiadora.
Mary del Priore é uma defensora da ideia de que o brasileiro gosta da história do próprio país. No prefácio de Colônia, ela sugere que ler sobre a pátria pode ajudar, inclusive, a gostar mais dela. Mas ela também admite o pouco conhecimento do brasileiro quando se trata da história ; recente ou não ; do país. Por isso, e também por pura paixão, há décadas ela se embrenha em arquivos e documentos a fim de trazer para as prateleiras das livrarias uma história mais palatável e acessível, distante da linguagem complexa da academia. ;Não adianta ficar tratando de conceitos, de modos de produção de antigo regime colonial porque isso não faz com que o leitor comum tenha prazer em ler história. Tenho nadado contra essa maré. Estou empenhada em fazer divulgação, difusão de história e não tem nenhum problema quando me perguntam se o livro é uma compilação. É uma compilação com muita coisa original e com temas divertidos e interessantes. E acredito que seja uma janela bacana para olhar o passado;, garante Mary.
Conhecer a própria história, ela acredita, é uma forma de acessar a cidadania e o Brasil anda bem necessitado nesse quesito. Até o fim do ano, ela lança ainda o volume Império. Em 2017, será a vez de República Velha e Nova República. Este último virá em forma de entrevistas. ;Estou sempre em busca de quebrar as amarras que temos da academia, que engessam muito a criatividade do historiador. E a criatividade é uma questão que hoje vem sendo exigida na forma de trabalho. Não vou recorrer à historiografia para interpretar do meu jeito o que aconteceu de 1950 a 2000. Vou utilizar entrevistas;, adianta a historiadora, que também fará uso da literatura para falar da República Velha.
Colônia ; Histórias da gente brasileira
De Mary del Priore. Casa da Palavra, 432 páginas. R$ 54,90
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